sábado, 31 de janeiro de 2015

Da Violência ao Terror

Uma breve reflexão sobre linguagem, política e ideologia.


Por Vitor Galvão Fraga¹



“Por qualquer medida os EUA há muito tempo vêm usando o terrorismo.
Em 1978-79 o Senado estava tentando passar uma lei contra o terrorismo internacional –
 em cada versão que eles produziam, os advogados diziam que os EUA a estariam violando.”
 
General William Odom, diretor da NSA durante o governo Reagan.



Recentemente o mundo chocou-se com o atentado contra a revista Charlie Hebdo na França, o que levou ao aparecimento de novos e velhos “especialistas” no tema Terrorismo. O termo terrorismo não é uma criação moderna, por mais que possa parecer, na verdade foi primeiramente usado para descrever os atos de violência do governo contra o seu povo durante o sangrento período do “Terror” na Revolução Francesa. Modernamente, o termo ganhou conotações bem próprias, de forma que quase naturalmente nós reconhecemos um ato terrorista quando ouvimos falar de um no jornal.

Mas afinal, o que é terrorismo? Apesar da poderosa força associativa que esse termo tem, ainda hoje teóricos se digladiam na tentativa de estabelecer uma definição cabal para o termo. Talvez a definição ‘mainstream’ no meio teórico seja a dada por Tim Dunne e Ken Booth no livro Worlds in Colision escrito, não por coincidência, em 2002 alguns meses depois da queda das Torres Gêmeas; os autores definem terrorismo como um método de ação política com o uso da violência contra civis e infraestruturas da sociedade civil a fim de influenciar comportamentos, infringir punição ou como meio de vingança.

Porém, é possível encaixar sob o mesmo conceito uma série de outras violências não tidas como ‘terroristas’, como táticas de guerrilha e movimentos separatistas; por exemplo, enquanto automaticamente se pensa em terrorismo quando se fala de Al Qaeda, quando o assunto é FARC o terreno se torna mais nebuloso, apesar de também se utilizarem de violência contra civis para atingirem seus objetivos, as FARC ainda são entendidas por muitos (incluindo o governo brasileiro) como ‘força beligerante’ ou ‘insurgente’.

A história nos mostra exemplos ainda mais interessantes, Nelson Mandela não só já foi catalogado como terrorista pelos EUA (tendo seu nome retirado apenas em 2008), como era líder do movimento orquestrador do episódio conhecido como Church Street bombing, um carro bomba programado para explodir durante a hora do rush ao lado de um quartel da força aérea sul-africana, matando e ferindo muitos civis como resposta ao assassinato de Ruth First, uma ativista do movimento anti-apartheid. Mais um perfeito exemplo que, analiticamente, é encaixável no conceito padrão de terrorismo.

Hoje, quando se fala em Nelson Mandela passa longe de ser associado com o terrorismo, seu protagonismo na luta pelo fim do apartheid o tornaram um símbolo de igualdade e paz. Mandela venceu na história, os objetivos pelos quais lutou foram absorvidos no curso da história como de alto valor, mais do que legítimos, e por isso a pecha de terrorista logo dele se afastou.

Uma frase simbólica que descreve bem o que venho falando até aqui foi dita por um juiz e acadêmico americano chamado Gus Martin no livro Understanding Terrorism, “o terrorista de uma pessoa é o guerreiro da liberdade de outra”. É preciso, portanto, questionar o que faz de um ato terrorista ou não, o que diferencia os guerreiros da liberdade dos terroristas. Terrorismo é um fato social; a violência, essa sim pode ser tido como um ‘fato bruto’, para usar a terminologia de Searle; a repercussão social gerada pela violência, os significados que se agregam ao ato paulatinamente na medida em que é – midiaticamente – reproduzido, esses sim são a verdadeira matéria constituidora do terrorismo; é uma construção cultural e, como não poderia deixar de ser, ideológica.

Mais do que isso, terrorismo é um termo político, é uma ferramenta de demonização daqueles que são seus inimigos políticos. Nada é mais eficaz em gerar e desaprovação da população do que a alcunha de terrorista. Por isso é comum que Estados que enfrentam movimentos separatistas tentem de pronto taxá-los de terroristas, os casos do Cáucaso e da Espanha são exemplos importantes disso. Isso é claro também no discurso norte americano, onde o termo terrorismo não é apenas usado para causar o descontentamento da população, mas vai mais além para legitimar intervenções armadas e transgredir normas de direito internacional. E mesmo no Brasil, volta e meia em época de eleição os partidos e mídia oposicionistas trazem à tona a época em que Dilma Rousseff participava da VAR-Palmares na tentativa de caracterizá-la como terrorista. Dilma venceu na história e não ganhou (para o mundo, pelo menos) o selo de terrorista, mas o de alguém que resistiu a um regime tirânico.

Mas afinal, foi/é Dilma uma terrorista? Pode ser que sim, pode ser que não, a resposta para essa pergunta depende exclusivamente da lente ideológica que você usa. É claro que há casos ditos ‘evidentes’ de terrorismo que a maioria de nós ocidentais botamos a mão no fogo em dizer que são, a já citada Al Qaeda, por exemplo; mas é preciso entender que mesmo esses ‘easy cases’ são uma construção social e ideológica, fortemente influenciada pela difusão midiática de informação, para um pequeno grupo extremista a Al Qaeda luta heroicamente contra o Grande Mal; num interessante trecho do livro What Terrorists Want de Louise Richardson, Professora da Universidade de St. Andrews nascida na Irlanda, ela conta como observava as pessoas que conheceu que ingressaram em grupos terroristas e os descreve como jovens idealistas lutando por um mundo melhor.

Esses casos que tomamos como ‘auto-evidentes’ de terrorismo são apenas o resultado da ideologia vencedora, da versão de mundo que foi inculcada em nossa cabeça de forma tal que quando ouvimos a palavra ‘terrorista’ nos vem logo à cabeça um homem barbudo e de turbante.

Por isso eu acredito ser fundamental duas atitudes com relação ao termo terrorismo. Em primeiro lugar, enquanto leitor é preciso atenção para não cair nas armadilhas ideológicas de um texto, é preciso sempre cautela e afastamento ao se deparar com a caracterização do que quer que seja como terrorista, pois é comum que isso esteja sendo feito com o intuito de empurrar outras concepções na cabeça de quem esteja lendo.

Por exemplo, no recente caso de Charlie Hebdo muito foi alegado, quase sempre sem muitas explicações, que o atentado foi contra a liberdade de expressão. Particularmente eu não enxergo dessa forma; no caso, a liberdade de expressão é indiretamente atingida, mas o ato me parece uma clara retaliação ao constante desrespeito das charges da revista à religião mulçumana; Os terroristas não fizeram o que fizeram defendendo uma forma geral de restrição à liberdade de expressão – mais perto disso estão muitos dos chefes de Estado que ostentaram a popular frase ‘Je suis Charlie’ – o objetivo foi bem tópico e a motivação foi vingativa, com fulcro de impor o respeito à sua religião, o que toca a liberdade de expressão mas não se trata exatamente dela; o cerceamento da liberdade de expressão é uma consequência que foi discursivamente transformada em motivação. É esse tipo de distorção discursiva que se torna mais facilmente assimilável pelo público quando associada ao núcleo valorativo que circunda o termo terrorismo, pois se espera o inferno daquilo que é demonizado. Isso sem mencionar os constantes ideais marginalizantes, como a islamofobia, que nos são empurrados quase naturalmente na maioria dessas colunas que lemos tratando do tema terrorismo; mais uma vez, é fácil generalizar o ódio quando se trata de um tema que o pressupõe discursivamente. Por isso, sempre um pé atrás.

Em segundo lugar, enquanto autores temos que ter consciência de que quando chamamos algo de terrorista o termo carrega consigo toda sua carga ideológica e seu potencial político. Indo mais além, eu diria que o termo deve ser evitado em publicações científicas – o que já é feito por um crescente número de estudiosos do tema (mais notadamente orientais) como defende, por exemplo, Jeroen Gunning em A Case for Critical Terrorism Studies – por provocar distinções entre esta ou aquela violência baseando-se em concepções ideológicas, nos levando ao perigo de cobrir com tão adorado manto da cientificidade aquilo que é mero preconceito.

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¹Membro do Direito em Foco.

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