sexta-feira, 27 de março de 2015

Conceitos jurídicos e a parábola do jardineiro¹



Por Raphael Tiburtino

Imaginemos um gramado sobre o qual há uma placa com os dizeres “é proibido pisar a grama”. A regra, à primeira vista, não parece incitar grandes problemáticas. Tem-se ela por descumprida quando alguém, com o perdão da obviedade, pisar a grama, ou seja, pressionar verticalmente o vegetal com a sola dos pés.

Digamos, então, que um jardineiro é contratado para cuidar do gramado, devendo tomar todas as medidas necessárias a sua preservação, o que inclui apará-lo. Para tanto, o jardineiro vê-se obrigado a pisar a grama. 

Tomado o texto em sua literalidade e sob um ponto de vista rigorosamente formal, não parecem restar dúvidas de que a conduta do jardineiro em pisar a grama viola a regra. Não consta no texto da placa qualquer ressalva quanto à vontade ou propósito de seus destinatários, sendo, a princípio, irrelevantes suas “boas intenções”.

Seguindo o exemplo, suponhamos que um guarda, competente pela fiscalização do parque e aplicação de eventuais sanções, depare-se com o caso narrado. Observando o jardineiro, entende, porém, que não deve ele ser punido. Em termos práticos, a incidência da regra não lhe é sedutora, sendo desejável, nesse caso específico, afastá-la. Ocorre que, em um direito dogmaticamente organizado, não é aceito esse afastamento injustificado. Não pode o guarda deixar de punir o jardineiro porque assim “quer” ou por ser esta, em sua opinião, a decisão mais “justa”. Deve render-se ao dogma, ou seja, à regra positivada. Como, então, resolver, ou melhor, neutralizar o problema?

Várias são as alternativas possíveis, porém tenho especial interesse naquela que recorre a conceitos jurídicos. Assim, uma solução possível seria defender que, ao ditar que “é proibido pisar a grama”, em verdade a placa se refere a um “pisar ordinário”. O jardineiro, por sua vez, realiza um “pisar terapêutico”, não se amoldando à hipótese prevista.

Ressalto que não se trata de um problema de textura aberta (open texture), no qual há dúvida se determinado elemento pertence ou não a um tipo-classe em razão de sua potencial vagueza (Cf. HART, 2001: 137-149). Como já disse, não é forçoso supor acordo quanto ao fato de o jardineiro ter efetivamente pisado a grama. Cuida-se, em verdade, de modelar o próprio conceito constante da regra. Esta, diriam, não aponta para o pisar/gênero, mas para um suposto pisar/espécie (“terapêutico”, “não-ordinário”). Recorre-se a uma distinção ad hoc: não consta qualquer referência, no texto da placa, aos conceitos “pisar ordinário” ou “pisar terapêutico”; fala-se, exclusivamente, em um indistinto “pisar”. A questão é que, feita a distinção, a não punição do jardineiro ganha ares de imparcialidade. A decisão é, por assim dizer, racionalizada (rationalized): “transforma-se” em um “saber” algo que, ao menos em parte, consubstancia-se em um “querer”.

Com a imagem do jardineiro, quero ilustrar o papel que os conceitos jurídicos desempenham no jogo dogmático. Têm como principal característica sua instrumentalidade, ou seja, sua aptidão para neutralizar problemas jurídicos. Florescem como expedientes retóricos que facilitam o angariamento de opiniões convergentes a um relato jurídico específico. No caso, o relato de que o jardineiro não deve ser punido, pois não violou a regra, torna-se dogmaticamente “possível” através da distinção entre “pisar terapêutico” e “pisar ordinário”.

Não nego que o caso do jardineiro é, por assim dizer, extremado – afinal, é apenas uma parábola. As situações concretas com as quais nos deparamos na prática jurídica mostram-se, se não mais sutis, consideravelmente menos claras. De toda forma, o caráter retórico dos conceitos jurídicos permanece, e é isso que importa.

É preciso aprender, de uma vez por todas, que os conceitos jurídicos não são entidades perfeitas e imutáveis. Muito pelo contrário, são, em certo aspecto, arbitrários, eis que nascem de meras convenções. Encontram-se e são moldados em um contexto específico, de onde deflui seu historicismo. Estão à mercê dos interesses daqueles que os manipulam, de quem estabelece os critérios que permitem colocar uns “objetos”, e não outros, em determinada “caixinha” conceitual. 

Entretanto, a doutrina jurídica brasileira continua avessa à retórica. É óbvio que há fortes razões práticas para continuar apresentando opiniões jurídicas como verdades. A própria retórica do direito dogmático consiste em maquiá-lo objetivamente para que se torne “possível”. O problema reside naqueles juristas que efetivamente creem no total despojamento ideológico do seu trabalho, imersos no “senso comum teórico” de que falou Warat (1995: 57-99). Reporto-me, então, a essa cegueira dogmatista, que, no Brasil, é patológica, generalizada, tal qual a representada por Saramago. Pois desconsiderar o caráter retórico dos conceitos pode levar a compreendê-los como que fins em si mesmos. E, assim, fomentam-se discussões inócuas, inúteis, inférteis, infrutíferas. Discussões cuja única função é gastar tinta e papel. É o “céu conceitual” de que fala Jhering, onde pairam conceitos tão distantes da realidade que teoria e prática não se misturam nunca (1974: 281-355). Ou, mais grave ainda, pensar os conceitos jurídicos como realidades que, per se, merecem defesa, significa ignorar os interesses que lhes subjazem, correndo-se o risco de propagar acriticamente uma ideologia implícita, em verdadeira alienação. Se vamos continuar participando do jogo dogmático, que ao menos conheçamos seu funcionamento².
REFERÊNCIAS 

ADEODATO, João Maurício; BITTAR, Eduardo C. B. (org.). Filosofia e teoria geral do direito: estudos em homenagem a Tércio Sampaio Ferraz Júnior por seu septuagésimo aniversário. São Paulo: Quartier Latin, 2011.
HART, Herbert. O conceito de direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.

VON JHERING, Rudolf. Bromas y veras en la jurisprudencia: un regalo de Navidad para los lectores de obras jurídicas. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974.



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¹ A parábola do jardineiro é apresentada por Torquato Castro Jr. (In ADEODATO; BITTAR, 2011: 1075-1087)

²Um exemplo desse fetichismo conceitual ocorreu recentemente, quando a presidente Dilma Rousseff, em pronunciamento oficial, cogitou convocar uma assembleia constituinte exclusiva para reforma política. Não quero entrar no mérito de tal medida, mas é sintomático que diversos juristas brasileiros tenham manifestado verdadeira ojeriza a uma constituinte em tais moldes apenas porque incompatível com o conceito clássico de poder constituinte originário – por definição, irrestrito. É como se efetivamente houvesse um universal “poder constituinte”, no qual cada poder constituinte singularmente tomado no mundo se enquadraria – e, a fortiori, um poder constituinte exclusivo seria um disparate, justamente por não se encaixar nessa forma (ou fôrma) ideal. Na parábola do jardineiro, é como se tais juristas saíssem em defesa de “pisares terapêuticos” ou “ordinários”, sem atentar para o fato de que, na verdade, o que está em jogo é se o jardineiro merece ou não ser punido.


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