segunda-feira, 16 de março de 2015

E se...




Por Ednaldo Silva
Mesmo quem conhece pouco a história da Faculdade de Direito do Recife, como este que vos escreve, sabe que esta já foi um importante centro de formação dos "grandes quadros" da sociedade brasileira, por assim dizer. Talvez isto tenha um pé no elitismo, é verdade, mas a FDR já foi capaz de formar de teóricos — e não só do direito, mas também da pedagogia, por exemplo — a juristas, passando por artistas e candidatos à presidência da república. Porém, a instituição, hoje, não tem mais tal competência. Alguns dizem que isso é resultado da diversificação dos cursos, que diminuiu a diversidade dos frequentadores da Casa de Tobias: antes, quem queria ser músico ou jornalista, por exemplo, acabava fazendo direito por falta de opção, já hoje eles podem seguir para as graduações mais adequadas. Normalmente eu respondo dizendo que em outros lugares do mundo também há essa diversidade de cursos, mas direito ainda forma "grandes cabeças". Contudo, dessa vez, tenho uma proposta diferente, farei uma pergunta: e se os bacharéis da FDR de hoje desempenhassem as funções dos bacharéis de ontem? 

Provavelmente o resultado seria desastroso. A começar pelo desempenho de funções na gestão pública. A maioria dos bacharéis de hoje não entende sequer o mínimo sobre o assunto.  Não que todo jurista deva ser um grande administrador, mas a ausência de tais conhecimentos se torna um grave problema quando o jurista não percebe o desempenho de suas atividades como parte da construção de um modelo de sociedade. O direito tem um quê de política pública no sentido mais lato do termo, sendo necessário que o jurista perceba seu papel na consolidação da democracia. É preciso que o civilista entenda a importância dos direitos civis na promoção de uma sociedade igualitária, atentando, por exemplo, para a luta por direitos civis de grupos tidos como minoritários; ou que o tributarista conheça formas de tornar a tributação mais compatível com o empreendedorismo, além de pensar maneiras de respeitar, de fato, a capacidade contributiva; ou que o penalista perceba o quanto o sistema penal é elitista e racista para que possa atuar na resolução desse problema... O direito é um instrumento interventor extremamente violento, de forma que quem o detém tem o dever de pensar maneiras de torná-lo o mais benéfico possível. Mas hoje são pouquíssimos os juristas que têm condições de fazer tal reflexão.  

Quanto a formar grandes pensadores, de fato não sei se existe uma diferença numérica na quantidade de egressos da FDR dedicados às questões mais teóricas — me refiro não só às zetéticas, mas também às dogmáticas. Sobre a qualidade e repercussão, não tenho conhecimento suficiente pra emitir uma opinião segura, embora uma análise breve e apressada me permita achismos. Contudo, posso afirmar com absoluta certeza que há uma clara diferença na relação que a instituição tinha e a que tem com as ditas "perfumarias". A casa de Tobias já foi, por exemplo, um espaço onde debate sobre o positivismo, então contemporâneo, em certa medida, encontrava ambiente propício. Hoje, nosso vistoso prédio, na maioria de suas vozes, apenas ecoa comentários à letra da lei, e muitos deles de péssima qualidade.  O que não é nada bom, já que um bom jurista precisa dominar as disciplinas zetéticas. Argumentar juridicamente, sendo um pouco simplista, nada mais é do que explicar um fato se utilizando de uma outra linguagem, de forma que, ao manejar os conceitos jurídicos, mais convincente será uma explicação quanto mais coerente for o enunciado, quanto mais o enunciado traduzir uma relação de acordo entre as ideias expostas. Um exemplo: Pedrinho, meu vizinho de 14 anos, assinou um contrato de compra e venda de imóvel; ao explicar isso, uma argumentação que enunciasse que, apesar da incapacidade de Pedrinho, o negócio jurídico é válido, provavelmente, seria vista como incoerente (o enunciado traduz uma relação incompatível, no caso entre incapacidade e validade) e não seria tão convincente quanto outra que explicasse que o negócio jurídico era inválido por causa da incapacidade do garoto. A explicação dada ao caso de Pedrinho pode parecer um tanto óbvia, porém, em certos momentos — e isto é mais comum do que se pensa — é preciso ir além do que já está estabelecido, pois a antiga resposta já não é mais suficiente. Então é necessário rearranjar os conceitos dogmáticos mantendo a coerência, e quem vai permitir esse reajuste são as zetéticas, que dão vazão ao questionamento e permitem ir além do dogma estabelecido. Na realidade, zetética e boa dogmática andam juntas — não é à toa que os bons professores dogmáticos da nossa casa, por exemplo, são aqueles que não desprezam as zetéticas.

Sobre ser um centro difusor de cultura e formar artistas, atualmente a instituição passa longe (muito longe) disso. Inclusive, hoje, é um ambiente muito mais avesso do que promotor desse tipo de discussão: há uma rechaço assustador de parte considerável da casa a qualquer manifestação que não esteja dentro de um senso moralista e defensor dos "temas artísticos nobres" — talvez arte sacra ainda encontre um espaço no local —, de forma que sequer os alunos se sentem à vontade para compartilhar o que produzem com seus iguais. Enfim. Isto, por sua vez, se torna um problema quando a arte é uma ótima ferramenta para se conhecer o outro. Uma obra literária, por exemplo, traz consigo um exercício natural de alteridade: você conhece situações novas, pessoas diferentes, e contrapõe valores de formas distintas. Como já expliquei por aqui, acumular esse tipo de experiência é importantíssimo pra alguém que lida com pessoas. E foi por isso, que, por exemplo, o prefeito de uma área extremamente violenta no México resolveu, em 2006, dar uma lista de livros para os seus policiais (AQUI).

Em meio a tudo isso, o que quero afirmar é que hoje a Faculdade de Direito do Recife — e não apenas ela, pois este é um problema que se estende a imensa maioria dos cursos de direito do Brasil — não forma mais tantas cabeças que pensam o país não apenas pela diversificação dos cursos, mas porque não é mais um ambiente propício para tal feito. E, mesmo que não se pretenda mais que o curso tenha tal objetivo — o que, a meu ver, é uma pena —, a ausência deste ambiente tem péssimas consequências também para o "jurista comum". Além do que, cá entre nós, posicionamentos jurisprudenciais e projetos de lei não são lá os assuntos mais interessantes pra se conversar com os amigos. Conversar sobre as duas fases de Vinicius, ou assustar os companheiros dizendo que Pulp Fiction é o melhor filme de todos os tempos — e nem me venham dizer que não! — é muito mais divertido.

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