quarta-feira, 24 de junho de 2015

“Manda quem pode, obedece quem tem juízo”

Breves comentários sobre a relação entre direito e poder na ‘sociedade internacional’

~Parte 1~


por Vitor Galvão Fraga

O direito é frequentemente ligado à ideia de violência, uma das respostas mais óbvias para a pergunta “por que as leis são obedecidas?” é que a sua violação leva a consequências indesejáveis para o violador. E esse não é só o senso comum, mesmo na universidade aprendemos que a coercitividade, ou seja, a possibilidade da coação (enquanto violência legítima), é característica necessária de toda norma jurídica. Famosas são as palavras de Jhering (se não me falha a memória): “direito sem coação é fogo que não queima, luz que não ilumina. ”.

Não é meu objetivo aqui discordar da tão bem estabelecida doutrina do coercitivismo. De um ponto de vista estrutural, toda norma jurídica parece estar, direta ou indiretamente, calcada numa ameaça que se apoia numa possibilidade real de violência. Porém, justificar a obediência geral das normas – questão que está mais na Sociologia do que na Teoria do Direito – na ideia de violência, ou pior, no grau de violência, não é algo auto evidente. 

A questão ganha contornos ainda mais interessantes quando se parte para terreno internacional. Consegue o direito obrigar dentro de uma sociedade anárquica? A pergunta se justifica na medida em que se associa a obediência às normas a um mecanismo sancionador legítimo: o Estado. Assim, na sociedade internacional, onde cada Estado é uma unidade soberana, por que os Estados cumprem as normas de direito internacional? Ou será que tudo se resume ao velho ditado que dá título a esse texto: “manda quem pode, obedece quem tem juízo” ?

Primeiramente, quando falo em sociedade anárquica, termo cunhado por Lowes Dickinson após a Primeira Grande Guerra, quero dizer apenas que não existe um poder superior que garanta a execução do direito. Isso não quer dizer que na anarquia não possa haver ordem, que pode existir sob as mais diversas formas, por exemplo, através da mútua ameaça que faz os países se manterem em paz e ordeiros por medo de um conflito desastroso (caso típico da Guerra Fria, em que as duas superpotências mundiais se respeitavam e evitavam conflitos diretos pelo medo das consequências de uma guerra nuclear); ou pela existência de uma hegemonia global ou local que force a ação de Estados mais fracos num sentido; e mesmo a cooperação entre Estados para atingir fins comuns.

Mas nenhum desses exemplos dados supõem necessariamente a obediência a uma ordem jurídica, ameaça mútua, hegemonia ou cooperação expressam estados de poder, são situações primordialmente políticas e não jurídicas. E o direito internacional? Será que o direito vale alguma coisa numa sociedade anárquica? Será que ele cumpre algum papel no estabelecimento de uma “ordem” dentro dessas condições?

Oona Hathaway, professora de direito internacional da Universidade de Yale, sugere dois modelos de teoria para encarar esse problema: o modelo racional e o modelo normativo. Por ser uma maneira simples e panorâmica de listar explicações, adotaremos essa classificação aqui.

Teorias dentro do modelo racional são aquelas que encaram os sujeitos da sociedade internacional como unidades individualistas, que medem antes de toda ação os custos e benefícios, de maneira a maximizar seu interesse próprio. Nesse modelo, o direito só é obedecido enquanto é vantajoso para o sujeito obedecê-lo, seja para melhorar sua reputação, expandir seu poder geopolítico ou apenas evitar conflito com Estados poderosos.

Na Teoria das Relações Internacionais é possível identificar algumas correntes de pensamento coerentes com esse modelo. A mais óbvia escola que vem à cabeça é a “realista". Os realistas são, talvez, o exemplo mais puro de uma teoria racionalista: tratados, diretivas e decisões de cortes internacionais são meras palavras para esses teóricos, os Estados só os cumprem enquanto coadunem com o interesse nacional. As razões centrais dos argumentos realistas são a anarquia internacional e a busca por ganhos relativos, Estados são unidades que buscam no mínimo sua autopreservação e no máximo a dominação mundial, nada além desses dois limites.

Assim, se ocorre obediência a regras de direito internacional, não é porque o direito é eficaz, mas porque a obediência a ele foi o caminho mais adequado na busca pelos seus próprios interesses. Além disso, podemos ressaltar nessa corrente de pensamento um verdadeiro ceticismo para com qualquer espécie de moralidade internacional, toda forma de moralismo é, assim, uma forma de justificar suas próprias ações tomadas na busca de sua riqueza e poder, essa é a clássica visão realista de autores como Morgenthau no famoso livro “Politics Among Nations”. Alguns neorrealistas, como Waltz, até aceitam que países tenham um genuíno cometimento com o direito, mas justificam isso na falta de opção frente à possível coação de Estados poderosos.

Além dos realistas, ainda seguindo a divisão de Oona Hathaway, aderem também ao modelo racional a escola institucionalista (mais conhecidos como neoliberais-institucionalistas). Para institucionalistas, como Robert Keohane, Instituições internacionais são importantes na determinação da ação dos Estados. Instituições existem para o único propósito de facilitar acordos e são seguidas apenas segundo uma lógica de maximização de utilidade na busca do interesse próprio.

No fim das contas, a ideia do que é o direito continua sendo a mesma dos realistas, a diferença é a ênfase na capacidade que tem o direito em estimular a cooperação internacional e os ganhos absolutos, ou seja, não é porque um Estado ganha que o outro deve perder, a cooperação é possível, e através do direito é possível que as duas partes ganhem.

Por fim, no modelo racional ainda pode-se mencionar os liberais. Aqui a ideia é um pouco mais complicada pois se baseia em certos valores éticos iluministas ligados a Locke e especialmente à paz perpétua de Kant. A primeira condição para a paz perpétua é que a estrutura política de toda nação deve ser “republicana” (no sentido de uma “democracia representativa”), pois nessa estrutura antes de um Estado entrar em guerra ele precisa do consentimento de seus cidadãos, que considerarão toda a calamidade e os riscos que isso envolve; logo, a escolha racional será sempre a de evitar a guerra, duas democracias nunca entrariam em guerra uma com a outra. Assim, a obediência ao direito internacional – situação oposta à guerra – é sempre favorável aos interesses domésticos e nesse raciocínio “obedecer às regras” é uma escolha racional entre democracias. Entre democracias...

O segundo modelo proposto na divisão que adotamos é o chamado “modelo normativo”. Todas as teorias agrupadas nesse modelo compartilham a crença que obrigações legais legítimas persuadem, ou seja, a ação dos Estados não é somente prevista com base em cálculos de interesses geopolíticos. Ideias, conceitos, normas, identidades, cultura, tudo isso importa tanto e até mais que o mero poder na determinação do comportamento estatal. A razão para eles importarem é que é uma fonte de desentendimento entre os diversos teóricos e, especialmente, o “como” as normas determinam o comportamento dos Estados.
  
O modelo mais proeminente desse tipo de teoria é o criado pelo casal Antonia e Abram Chayes, chamado de “modelo gerencial de observância aos tratados”, que foca no discurso internacional. Aqui, acredita-se num approach cooperativo para a resolução de conflitos no direito internacional, não há necessidade de sanções, ameaças e violência, os Estados são propensos a cumprir suas obrigações acordadas segundo o princípio do “pacta sunt servanda”. A desobediência a tratados firmados são razão não de um sopesamento de prós e contras, mas simplesmente de uma falta de informações importantes para o cumprimento.
  
A corrente de pensamento chamada de coesão social ou lógica da legitimidade ou razoabilidade prefere justificar o cumprimento de obrigações de direito internacional com base na legitimidade das regras que geram as obrigações. Essa é a posição de Phillip Trimble, que diz que a persuasão de normas internacionais depende de sua compatibilidade com outras normas já generalizadamente aceitas pela comunidade internacional, e consequentemente sua razoabilidade e transparência segundo o parâmetro das normas já estabelecidas. Assim, a obediência ao direito é fundada numa aceitação generalizada de normas internacionais pré-estabelecidas, que por sua vez refletem a consistência com valores de legitimidade do processo normativo, é o que Thomas Frank chama de “validação simbólica”.

Uma última corrente no modelo normativo é a conhecida como lógica ideacional. Harold Koh é o grande expoente dessa corrente, ele defende que normas não são seguidas por suas ameaças de coação, mas sim porque foram internalizadas. A internalização é descrita como um complexo processo que pode ser resumido da seguinte forma: dois ou mais atores da sociedade internacional interagem um com um outro, a interação (o problema, o caso, etc.) requer que se enuncie uma norma aplicável a ela; tal enunciação gera uma regra (de maneira tópica) que, se aceita, pode ser usada futuramente para guiar novas interações similares; com o tempo, a repetição de interações similares e a aplicação constante daquela norma a torna “internalizada”, quando ela passa a ter uma força tal que consegue, eventualmente, até reconstituir os interesses e identidades das partes envolvidas.

É importante observar nessa última corrente a forte influência construtivista sobre o papel que tem as identidades em interação com as normas e instituições, apenas para ilustrar essa ideia, subscrevo abaixo uma tradução própria de um trecho do capítulo “Moral Reasoning in International Law” de Roger Alford e James Tierney, parte do livro “The role of ethics in international law” organizado por Donald Earl Childress e publicado pela Cambridge University Press, que diz:

Porque leis e regras existem como um modelo de entendimento social básico sobre comportamentos proibidos e esperados, membros de diferentes grupos de identidade irão compartilhar esses entendimentos e então passarão a seguir essas regras como condições mesmas de sua identidade de grupo. (...) quando sujeitos partilham entendimentos quanto ao conteúdo e legitimidade de regras, essas regras se alinham com seus outros conhecimentos intersubjetivos que eles compartilham sobre o universo social e então provém as medidas para perseguir metas, compartilhar significados, comunicar um com o outro, criticar assertivas e justificar ações. 


Ao fim dessa resumida e apressada lista de pensamentos e vertentes diferentes, o leitor deve estar se perguntando: “Qual é, afinal, a teoria que melhor explica a obediência ao direito internacional? E qual é a utilidade desse tipo de reflexão?” Como o texto já está um pouco longo, deixo essas perguntas para serem respondidas na ~parte 2~ desses “breves comentários”, que será publicada aqui na semana que vem. 

Até a próxima semana!

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