quinta-feira, 2 de julho de 2015

“Manda quem pode, obedece quem tem juízo”

breves comentários sobre a relação entre direito e poder na ‘sociedade internacional’


~Parte 2~

Por Vitor Galvão Fraga

A ~parte 1~ desses “breves comentários”, publicada semana passada aqui no blog do Direito em Foco, abriu a discussão sobre a persuasão do direito internacional e seu papel, reduzido ou não, diante do poder político real na sociedade internacional. Após um breve panorama das principais posições teóricas sobre o tema, terminei o texto passado com as seguintes perguntas que me propus a responder aqui: “1) qual é, afinal, a teoria que melhor explica a obediência ao direito internacional? 2) e qual é a utilidade desse tipo de reflexão?”

Para a primeira pergunta, se você é familiarizado com textos teóricos, não vai se espantar em saber que não dá para indicar cabalmente apenas UMA teoria correta, cada pensamento aqui listado trouxe avanços às relações internacionais e também enfrentou críticas e obstáculos, umas conseguem explicar melhor certos fenômenos e outras outros.

Eu pontuaria apenas que é impossível negligenciar hoje a importância tanto das normas de direito internacional, como das relações de poder entre os Estados, as duas condicionantes atuam juntas na determinação do comportamento dos membros da sociedade internacional e por isso não dá para fechar os olhos nem para os avanços do modelo racional nem do modelo normativo.

Usando alguns conceitos luhmannianos, tanto expectativas normativas (comuns ao direito) quanto expectativas cognitivas (a riqueza de um país, por exemplo), atuam juntas na redução de complexidade, ou seja, no estreitamento daquilo que podemos esperar da atuação dos Estados. O direito, enquanto uma forma de comunicação generalizada e diferenciada certamente impõe condutas aos sujeitos de direito e limitam o seu atuar, tanto que existem os chamados “sistemas jurídicos neo-espontâneos” que prescindem até da atuação (política) estatal. O direito impõe obrigações e é obedecido independentemente de uma atuação política, uma interação jurídico-política - num modelo constitucional – é importante, porém não essencial para que o direito atue reduzindo complexidade, obrigando.

O descumprimento de obrigações internacionais em detrimento de interesses políticos e do uso do poder justifica-se naquilo que Marcelo Neves chama de “tendência totalizadora” do sistema político, mas isso não torna o direito “meras palavras vazias”, como na extrema ideia realista, mas sim tanto as normas como os interesses atuam concomitantemente na determinação da ação dos Estados, a existência de um não exclui o outro, ambos devem ser levados em conta. É certo que a estrutura anárquica da sociedade acentua a “totalização” dos interesses políticos, mas, como explica a ideia de internalização normativa já mencionada, as normas mesmas ajudam a compor a noção de interesse nacional e não podem ser negligenciadas.

Pelo que foi explicado acima, entendo que a melhor maneira de encarar o assunto é de uma maneira eclética, Estados são sim unidades racionais que agem na busca de seus interesses, mas ao mesmo tempo as noções de identidade importam na determinação desses interesses e aí as normas jurídicas cumprem um papel determinante na relação entre os Estados.

Em suma, acredito que não dá para negligenciar aquilo que os teóricos do modelo racional dizem sobre as relações de poder e os cálculos de ganho, assim como não se pode deixar de lado as conclusões normativas sobre o papel das normas e a construção das identidades Estatais. E isso nos leva à segunda pergunta: “qual é a utilidade disso? ”. Adotar uma posição eclética é reconhecer as conclusões e importantes contribuições que as duas perspectivas trouxeram para o Direito internacional, como resposta a essa pergunta, menciono abaixo algumas dessas contribuições.

Começando com o modelo racionalista, é a partir dele que se justifica o uso da Teoria dos Jogos (que tem aplicação nesse âmbito já com Morgenthau na década de 40) que já foi responsável por importantes contribuições para o direito internacional. Talvez a mais evidente dessas aplicações seja em relação ao direito econômico internacional e às séries de negociações em torno do GATT que muitas vezes não avançavam por mais que o avanço fosse benéfico para todos, o que é usualmente ilustrado na figura do “dilema do prisioneiro”.

Ainda no modelo racionalista, menciono também a já clássica pesquisa de Eric Posner e John Yoo sobre a independência dos tribunais internacionais publicada pela California Law Review em 2005, que demonstrou numericamente a tendência de tribunais independentes serem desrespeitados por países poderosos, o que leva os autores a defender que os tribunais internacionais são mais efetivos quando dependentes dos Estados, pois aí garante-se um maior estreitamento do direito e do interesse estatal, facilitando a obediência às decisões das cortes.

Também são raciocínios dentro do modelo racional que levam à elaboração de sistemas eficazes de sanção, como o que ocorre com o Tribunal Irã-Estados Unidos, que, sabendo da propensão que ambos os Estados teriam a não cumprir decisões contrárias a eles, criou desde sua fundação um fundo prévio em que os Estados depositaram uma quantia suficiente de dinheiro antes mesmo do resultado das decisões, inutilizando a possibilidade de um deles negar uma compensação pois tal seria retirada desse fundo pelo próprio tribunal

Das contribuições do modelo normativo posso mencionar as pesquisas importantíssimas da corrente teórica de relações internacionais conhecida como “Foreign Policy Analysis”, que é centrada especialmente na ideia de identidade e sua associação com os agentes do governo de cada país. Uma famosa contribuição dentro dessa corrente foi a explicação dada por Graham Allison para a Crise dos Mísseis Cubanos no livro “Essence of Decision”.

Nesse livro ele cria importantes conceitos como o de “SOP – Standard Operational Procedure”, que explica a maneira não necessariamente “racional” que a burocracia tem para lidar com eventos e responder a práticas conhecidas. Seu trabalho abriu as portas para estudos de vertente mais psicológica que explicam e preveem a ação dos Estados e a forma como eles entendem e reagem, por exemplo, às normas de direito internacional. (Para um histórico detalhado desses estudos, vide: Valerie Hudson, “Foreign Policy Analysis”, Blackwell publishing)

Também as contribuições construtivistas no entendimento e desenvolvimento do regime internacional de direitos humanos são de vital importância atualmente. Apenas para citar um exemplo, Christian Reus-Smit, professor da Universidade de Queensland, Austrália, demonstrou o erro no senso comum teórico da época em justificar o fortalecimento do tão evidenciado regime internacional de direitos humanos numa reação ao surgimento de pequenos e falidos Estados, ex-colônias, que mal conseguiam garantir certos bens políticos e sociais a seus cidadãos.

Reus-Smit demonstrou num artigo escrito em 2001 que, ao contrário do pensamento comum, o mais razoável seria explicar a descolonização no regime de direitos humanos e não o contrário. Entre outras razões mais “sociológicas”, isso é claro quando se observa que certos Estados da primeira onda de descolonização, como Índia e Paquistão, foram importantes atores na construção dos principais diplomas de direitos humanos da época, o que justificava seus objetivos na busca de um direito humano de autodeterminação. A conclusão que se tira desse artigo é que hoje a soberania é diretamente determinada pelo regime de direitos humanos, numa interessante interação entre direito e política.

Em conclusão, explicativas simplistas sobre o cumprimento de obrigações legais, geralmente relacionadas ao uso da força e da ameaça não são suficientes para explicar a complexa interação entre Estados e desses com as normas de direito internacional. Também não é suficiente a bastante comum redução do direito ao poder, desconsiderando os papéis de identidades, normas e cultura.


Como explicado acima, não é preciso tomar time na explicação da sociedade e do direito, assim como na construção de ferramentas e soluções para novos problemas e respostas para novas questões, tanto modelos racionalistas quanto normativos de encarar o cumprimento do direito internacional tem muito a dizer e contribuir. Tomar em conta as conclusões das duas perspectivas, compará-las e sistematiza-las é reconhecer a complexidade do fenômeno internacional, expandindo horizontes para uma melhor compreensão dessa complexidade.    

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