quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sobre Teoria Geral do Direito, utilidade e um equívoco bem difundido

por Raphael Tiburtino*



            Desde  o início de minha graduação em direito, sempre nutri certo fascínio por disciplinas, por assim dizer, não estritamente dogmáticas. E fui muito criticado por isso. Várias foram as ocasiões em que colegas de curso, vendo-me debruçado sobre Kelsen ou Vilanova, questionavam por que ainda “perdia tempo” com tais leituras. “Isso é inútil”. “De que vai servir isso?”. “Tá bom de começar a estudar matérias que sirvam à prática”. Enfim, dos vários comentários que fui obrigado a tolerar, o denominador comum parece ter sido sempre este: a utilidade de tais matérias – ou a suposta falta dela.

Antes que pensem que este é um texto sobre minha formação acadêmica, quero logo deixar claro que a posição de meus colegas não é isolada. Muito pelo contrário. No ambiente jurídico brasileiro, prevalece certa indiferença, quando não verdadeiro desprezo em relação às disciplinas não estritamente dogmáticas. Na Faculdade de Direito do Recife, em que pese sua tradição histórica, esse preconceito se repete. (Se querem senti-lo na pele, basta andar pelos corredores da Casa de Tobias com um livro de Bobbio ou Hart). Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Hermenêutica Jurídica, Sociologia Jurídica, Lógica Jurídica, História do Direito, enfim, toda e qualquer disciplina que não colha seus conceitos diretamente do direito positivo (ou, para os mais intransigentes, da “lei”) são postas indistintamente pelo alunado (e, ainda mais grave, por parte considerável dos docentes) em uma mesma “caixa”. “Caixa” que, sem muita reflexão ou rigor analítico, rotulam de “zetética”, logo seguida da pecha de inútil. Em outras palavras, o comum é pensar essas disciplinas como pouco ou nada relevantes para a solução de conflitos jurídicos concretos (uma lide judicial ou a confecção de um contrato, por exemplo), de modo que sua importância, se é que existe, estaria reservada ao universo exclusivamente acadêmico, sem qualquer alcance sobre a prática forense.

Não pretendo argumentar em favor da influência que disciplinas zetéticas teriam na formação pessoal do jurista. Tampouco atacar a (já tão desgastada) separação entre teoria e prática. Tais questões devem, é evidente, ser enfrentadas, porém esta não é a forma nem o lugar adequado. Aqui, para ficar com o lugar-comum, tenho objetivo mais “prático”, qual seja chamar a atenção para uma generalização indevida, um equívoco bem difundido em nossa cultura jurídica. Em suma, quero dizer que, se a roupagem da “inutilidade” veste disciplinas como Filosofia do Direito, certamente seu molde não se adequa às medidas de uma Teoria Geral do Direito.

            Se há algo neste texto que valha a pena, é isto: Teoria Geral do Direito não é Filosofia do Direito. Não nego que haja certa aproximação e até pontos de interseção entre as duas disciplinas, mas isso não implica identidade. A Filosofia do Direito se ocupa de problemas como a existência de limites éticos ao conteúdo de regras jurídicas (por exemplo, a injustiça do direito nazista retira seu quê de juridicidade?) ou a possibilidade de o direito regular condutas futuras através de enunciados gerais prévios (a lei limita a atuação do juiz ou ele age absolutamente livre de quaisquer amarras?). Ainda que seja possível seu redirecionamento à prática forense, parece claro que o enfrentamento de tais questões não visa à solução direta de conflitos jurídicos concretos. Até aqui, nada de relevante tenho a contestar.

            Ocorre que o mesmo não pode ser dito da Teoria Geral do Direito. Esta tem caráter eminentemente operacional. Nas palavras de Kelsen , “fornece os conceitos fundamentais por meio dos quais o Direito positivo de uma comunidade jurídica definida por ser descrito” (Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XVII). Norma jurídica, relação jurídica, incidência, sujeito de direito, validade, eficácia, etc., todos estes são conceitos fundamentais, justamente, porque basilares, alicerces, premissas do discurso jurídico, não tendo seu alcance limitado a um ramo específico – a rigor, sequer a um ordenamento específico. Do tributarista ao civilista, meu ponto é que o manuseio consciente e eficaz de seu objeto depende de um sólido conhecimento de Teoria Geral do Direito.

            Há uma série de controvérsias jurídicas reais cuja abordagem adequada depende de conceitos de Teoria Geral do Direito. Por exemplo, um problema jurídico hoje não pacificado por nossos tribunais diz respeito à possibilidade de Estados glosarem créditos de ICMS que tenham sido apurados por contribuintes com lastro em benefícios concedidos por outros Estados sem aprovação do Confaz. Por mais que a questão possa ser abordada por ângulos diversos, quero me ater à discussão em torno da ideia de presunção de validade das normas jurídicas. Segundo Kelsen, uma norma jurídica, até que seja declarada inválida por um órgão que tenha competência para tanto, presume-se válida, devendo ser observada por seus destinatários (Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 300-306). Apoiados em tal premissa, argumentam certos tributaristas que, até que o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade da lei estadual concessiva do benefício, o crédito apurado pelo contribuinte permanece perfeitamente hígido, não podendo outros Estados questioná-lo, ainda que isso implique considerável perda de arrecadação. Trata-se, como se percebe, de um problema inequivocamente jurídico, de extrema relevância prática, e que demanda profundo domínio de Teoria Geral do Direito.

            Não obstante essas claras diferenças, as matérias não estritamente dogmáticas continuam sendo jogadas no mesmo “saco”. Teoria Geral do Direito é confundida com Filosofia do Direito, herdando todos os adjetivos que a esta, justa ou injustamente, são atribuídos. Daí que, no Brasil, autores como Paulo de Barros Carvalho, independente de outras críticas ou méritos, são dignos de nota somente por atentarem para a importância da Teoria Geral do Direito no trato de problemas concretos, introduzindo seus conceitos no âmbito de disciplinas dogmáticas. E os frutos de tal empreitada têm sido inúmeros. É uma pena que, enquanto não deixarmos de lado nosso preconceito, jamais teremos condições de colhê-los.


* Dedico este texto ao amigo Júlio César Almeida, por ter sido o primeiro a abrir meus olhos para a importância da Teoria Geral do Direito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário