por Raphael Tiburtino*
Desde o início de minha graduação em direito, sempre
nutri certo fascínio por disciplinas, por assim dizer, não estritamente
dogmáticas. E fui muito criticado por isso. Várias foram as ocasiões em que
colegas de curso, vendo-me debruçado sobre Kelsen ou Vilanova, questionavam por
que ainda “perdia tempo” com tais leituras. “Isso é inútil”. “De que vai servir
isso?”. “Tá bom de começar a estudar matérias que sirvam à prática”. Enfim, dos
vários comentários que fui obrigado a tolerar, o denominador comum parece ter
sido sempre este: a utilidade de tais matérias – ou a suposta falta dela.
Antes que pensem que este é um texto sobre
minha formação acadêmica, quero logo deixar claro que a posição de meus colegas
não é isolada. Muito pelo contrário. No ambiente jurídico brasileiro, prevalece
certa indiferença, quando não verdadeiro desprezo em relação às disciplinas não
estritamente dogmáticas. Na Faculdade de Direito do Recife, em que pese
sua tradição histórica, esse preconceito se repete. (Se querem senti-lo na
pele, basta andar pelos corredores da Casa de Tobias com um livro de Bobbio ou
Hart). Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Hermenêutica Jurídica,
Sociologia Jurídica, Lógica Jurídica, História do Direito, enfim, toda e
qualquer disciplina que não colha seus conceitos diretamente do direito
positivo (ou, para os mais intransigentes, da “lei”) são postas indistintamente
pelo alunado (e, ainda mais grave, por parte considerável dos docentes) em uma
mesma “caixa”. “Caixa” que, sem muita reflexão ou rigor analítico, rotulam de
“zetética”, logo seguida da pecha de inútil. Em outras palavras, o comum é
pensar essas disciplinas como pouco ou nada relevantes para a solução de
conflitos jurídicos concretos (uma lide judicial ou a confecção de um contrato,
por exemplo), de modo que sua importância, se é que existe, estaria reservada
ao universo exclusivamente acadêmico, sem qualquer alcance sobre a prática forense.
Não pretendo argumentar em favor da
influência que disciplinas zetéticas teriam na formação pessoal do jurista.
Tampouco atacar a (já tão desgastada) separação entre teoria e prática.
Tais questões devem, é evidente, ser enfrentadas, porém esta não é a forma nem
o lugar adequado. Aqui, para ficar com o lugar-comum, tenho objetivo mais “prático”,
qual seja chamar a atenção para uma generalização indevida, um equívoco bem
difundido em nossa cultura jurídica. Em suma, quero dizer que, se a roupagem da
“inutilidade” veste disciplinas como Filosofia do Direito, certamente seu molde
não se adequa às medidas de uma Teoria Geral do Direito.
Se há algo neste
texto que valha a pena, é isto: Teoria Geral do Direito não é Filosofia do
Direito. Não nego que haja certa aproximação e até pontos de interseção entre
as duas disciplinas, mas isso não implica identidade. A Filosofia do Direito se
ocupa de problemas como a existência de limites éticos ao conteúdo de regras
jurídicas (por exemplo, a injustiça do direito nazista retira seu quê de
juridicidade?) ou a possibilidade de o direito regular condutas futuras através
de enunciados gerais prévios (a lei limita a atuação do juiz ou ele age
absolutamente livre de quaisquer amarras?). Ainda que seja possível seu
redirecionamento à prática forense, parece claro que o enfrentamento de tais
questões não visa à solução direta de conflitos jurídicos concretos. Até aqui,
nada de relevante tenho a contestar.
Ocorre que o
mesmo não pode ser dito da Teoria Geral do Direito. Esta tem caráter eminentemente
operacional. Nas palavras de Kelsen , “fornece os conceitos fundamentais por
meio dos quais o Direito positivo de uma comunidade jurídica definida por ser
descrito” (Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XVII). Norma jurídica, relação jurídica, incidência, sujeito
de direito, validade, eficácia, etc., todos estes são conceitos fundamentais,
justamente, porque basilares, alicerces, premissas do discurso jurídico, não tendo
seu alcance limitado a um ramo específico – a rigor, sequer a um ordenamento
específico. Do tributarista ao civilista, meu ponto é que o manuseio
consciente e eficaz de seu objeto depende de um sólido conhecimento de Teoria
Geral do Direito.
Há uma série
de controvérsias jurídicas reais cuja abordagem adequada depende de conceitos
de Teoria Geral do Direito. Por exemplo, um problema jurídico hoje não
pacificado por nossos tribunais diz respeito à possibilidade de Estados
glosarem créditos de ICMS que tenham sido apurados por contribuintes com lastro
em benefícios concedidos por outros Estados sem aprovação do Confaz. Por mais
que a questão possa ser abordada por ângulos diversos, quero me ater à
discussão em torno da ideia de presunção de validade das normas jurídicas.
Segundo Kelsen, uma norma jurídica, até que seja declarada inválida por um
órgão que tenha competência para tanto, presume-se válida, devendo ser
observada por seus destinatários (Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 300-306). Apoiados em tal premissa, argumentam
certos tributaristas que, até que o Supremo Tribunal Federal declare a
inconstitucionalidade da lei estadual concessiva do benefício, o crédito
apurado pelo contribuinte permanece perfeitamente hígido, não podendo outros
Estados questioná-lo, ainda que isso implique considerável perda de
arrecadação. Trata-se, como se percebe, de um problema inequivocamente jurídico,
de extrema relevância prática, e que demanda profundo domínio de Teoria Geral
do Direito.
Não obstante essas claras diferenças, as matérias não estritamente dogmáticas continuam sendo jogadas no mesmo “saco”. Teoria Geral do Direito é confundida com Filosofia do Direito, herdando todos os adjetivos que a esta, justa ou injustamente, são atribuídos. Daí que, no Brasil, autores como Paulo de Barros Carvalho, independente de outras críticas ou méritos, são dignos de nota somente por atentarem para a importância da Teoria Geral do Direito no trato de problemas concretos, introduzindo seus conceitos no âmbito de disciplinas dogmáticas. E os frutos de tal empreitada têm sido inúmeros. É uma pena que, enquanto não deixarmos de lado nosso preconceito, jamais teremos condições de colhê-los.
* Dedico este texto ao amigo Júlio César Almeida, por ter sido o primeiro a abrir meus olhos para a importância da Teoria Geral do Direito.
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