Um sincero obrigado ao movimento estudantil
por Ednaldo Silva
Quando
se vai ficando velho, é comum lembrar de fatos passados pesando a
sua importância na própria formação — ao menos com meus avós
foi assim: "ah, meu neto, eu aprendi muito com o velho. Certa
vez..." é uma das que mais escutei de minha avó paterna. No
fim das contas, todo velho protagonizou uma epopéia — ou ao menos
gostaria de ter vivido uma.
E,
bem, cronologicamente não sou nada velho, tenho 20 anos. Eu sei, é
verdade, estou mais para aqueles jovens imberbes que invejam a
imponente barba dos avós enquanto esperam ansiosamente pelo dia em
que inaugurarão a gilete. Porém, em termos de graduação, sou um
velho. Estou no 7ª período de um curso de 10, mais pra lá do que
pra cá, e aceitei o diagnóstico que me foi ofertado por um amigo:
vivo a crise da segunda metade do curso — seja lá o que isso
queira dizer. Sendo assim, como velho que sou, tenho me permitido me
alongar demais no desnecessário e procurar na minha passagem pela
graduação os tais acontecimentos dignos de nota.
Até
o momento contei 5. Um deles foi a minha primeira eleição do
diretório acadêmico, na qual tive sorte: essa eleição foi marcada
pelo surgimento de um novo movimento estudantil na casa, que passou a
ter 3. Se o debate ideológico já era considerável antes, passou a
ser maior. Aquela não era bem a efervescência científica e
cultural que eu esperava quando ingressei na universidade, mas,
diante do quase um ano de completo marasmo, já era algo. Os
corredores bastante ocupados e os alunos dispostos ao embate franco —
às vezes dispostos até demais — foi o suficiente para me levar,
em um caminho sem volta, a preferir as conversas dos corredores à
maioria das aulas, algo do que não me arrependo.
Mas
enfim. Se na época o movimento estudantil da minha faculdade já me
encantou pelo simples engajamento, um certo tempo depois percebi que
ele tem uma importância um pouco maior. Tais grupos são hoje os
principais responsáveis por exercer, mesmo que não da forma mais
adequada, a discussão política na academia jurídica, a qual é
essencial.
Um
dos meus juristas preferidos, Luis Alberto Warat, falava da
necessidade de carnavalizar o direito em prol de um exercício mais
democrático de tal poder. Warat demonstra acreditar que, de fato, as
possibilidades de exercício do poder, a partir dos instrumentos já
existentes, são limitadas. No entanto, seria possível, a partir da
boa compreensão do funcionamento destes vários instrumentos de
poder, utilizá-los de "formas melhores" — termo tão
preciso quanto um texto de blog permite ser. Envolta nesta idéia
está a carnavalização do direito: torná-lo acessível aos nossos
desejos, de forma que possamos dar luz aos nossos anseios. Assim,
tornar o direito um pouco mais propenso à sugestões sobre seu
conteúdo e seu funcionamento a partir de um debate mais amplo destas
questões seria essencial para um exercício democrático do poder
jurídico.
Este
reconhecimento de que o exercício do direito tem um importante papel
político, que não pode ser ignorado, pode parecer algo um tanto
quanto óbvio, mas não o é, ao menos se olharmos para o atual
ensino do direito. É dificílimo encontrar professores que, em suas
aulas, contextualizem o uso da ferramenta jurídica, apontando, por
exemplo, que tipo de efeitos a produção de uma norma jurídica —
no sentido mais lato possível do termo, compreendendo desde os
códigos até as decisões judiciais — têm tido sobre a sociedade,
ou refletindo sobre as possibilidades do uso de institutos jurídicos
para integrar setores da sociedade hoje marginalizados.
E,
se os professores não fazem esse tipo de análise, os movimentos
estudantis são hoje, na maioria das instituições federais, os
responsáveis por oferecer aos estudantes de direito a possibilidade
de ter um mínimo de contato com debates políticos durante a
graduação. Realmente, isto não é feito da "forma acadêmica"
— e nem cabe exigir que o seja —, mas, em meio à completa
ausência, é um avanço. Não há, na maior parte das vezes, o
exercício da interseccionalidade entre política e direito, mas há,
ao menos, a apresentação do cenário político, e conhecê-lo é o
primeiro passo de um caminho longo que precisa ser percorrido:
reconhecer que a política criminal falhou no combate as drogas, por
exemplo, é o primeiro passo para desenvolver formas jurídicas
voltadas para a solução do problema, tenham elas pretensões
abolicionistas ou meramente reformadoras.
E,
veja bem, isto não se trata de mero comprometimento ideológico. É
questão de responsabilidade. Que o jurista tenha acesso às mais
diversas vertentes e possa escolher, o mais livremente possível,
qual prefere seguir; contudo, ele não deve simplesmente ignorar as
consequências que se tem ao escolher entre um sistema tributário
que foque no consumo ou na renda, por exemplo. Ignorar o viés
político do direito não o faz sumir.
Esta
é uma análise sistêmica extremamente necessária e, se não pode
ser desempenhada exclusivamente por juristas, visto que requer,
também, certos dados muito melhor manejados por outros saberes, como
a sociologia, precisa ser, também, desempenhada por juristas. No
momento em que se redige um código penal, por exemplo, não se pode
ignorar, entre a redação de artigos e incisos, os efeitos que a
tipificação terá; se será responsável por promover mais
segregação, se é motivada por pura estigmatização ou existe boa
razão que a justifique... Não agir de tal forma é ser
completamente irresponsável. É contribuir para a consolidação de
um modelo de sociedade sem sequer refletir sobre a contribuição
feita.
Tão
irresponsável quanto, por exemplo, ser um juiz que, ao aplicar a
legislação civil, ignora os efeitos da sua interpretação sobre
setores minoritários da sociedade. De fato, não há apenas uma
resposta certa no direito, mas apenas respostas válidas ou
inválidas: ou o jurista manuseou bem o arcabouço conceitual, ou
não. Então, que o jurista seja "livre" dentro da sua
própria capacidade de fundamentar juridicamente sua linha
argumentativa, mas que aja com plena consciência das escolhas
políticas que faz. Ou seja, conhecer a política jurídica é algo
necessário tanto para acadêmicos, quanto para promotores,
procuradores, juízes...
Por
isso, aproveito e agradeço aos movimentos estudantis da minha
faculdade por terem facilitado o contato com este tipo de discussão,
que, a depender dos meus professores, só teria tido pouquíssimas
vezes, contáveis nos dedos das mãos — de uma das mãos, sendo
mais preciso. A todos, sem exceção. Embora tenha minhas
discordâncias — principalmente na forma de proceder, às vezes
incisiva demais, a meu ver —, mais com uns do que com outros, é
preciso ser justo e reconhecer que nisso todos tiveram sua parcela de
importância.
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