quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Reflexões sobre a crise do ensino jurídico brasileiro – proposta singela para uma saída. [1]

Por Marco Antonio Toresan*


É interessante como os apontamentos sobre os problemas do ensino jurídico brasileiro repetem-se na literatura de forma mais ou menos homogênea há muito tempo[2]. Muito embora a crítica ao modelo posto não seja unívoca, existem determinados pontos de convergência nos discursos sobre a crise do ensino jurídico. Nada obstante, poucas medidas institucionais se dão no sentido de alterar o status quo.

A relação de conteúdos e a forma pela qual eles são distribuídos em uma grade curricular engessada e excessivamente segmentada culminam em uma “abordagem enciclopédica, exegética, escolástica [e um tanto quanto autista] do direito positivo vigente” (UNGER, 2006, p. 118). Isso, pois há uma estéril transposição de um problema epistemológico entre zetética e dogmática jurídica para a metodologia de ensino dos professores nas escolas de direito. Esses dois enfoques teóricos são tratados pelos professores numa espécie de divisão alopátrica, contribuindo para a fragmentarização e descontextualização do conhecimento jurídico produzido nas faculdades de direito do país[3].

Em um primeiro momento, as chamadas disciplinas propedêuticas deveriam fornecer ao aluno o arsenal teórico de que necessita para operar os instrumentais jurídicos, bem como dar-lhe noções sobre o mundo que circunda o direito e sobre o qual exercerá sua função social. Todavia, o caráter não dogmático dessa etapa de ensino – que deveria contribuir à formação do futuro jurista – acaba por propiciar uma “formação verniz”, que, nos dizeres de Faria, é “brilhante mas superficial” (FARIA, 1987, p. 56). As investigações de enfoque zetético que deveriam aí ocorrer se perdem em abstrações descoladas da realidade social, sem nenhum caráter reflexivo em relação ao direito positivo vigente. Sua superficialidade, portanto, decorre da falta de enfretamento dos problemas essenciais que surgem no tecido social e que esperam resposta do ordenamento jurídico.

Em oposição ao fetichismo teórico acima descrito, está a etapa seguinte no ensino de uma escola de direito: a dogmático-informativa. É nessa fase – que ocupa a maior parte da grade curricular – que os alunos passam a ter contato com materiais legislativos e com posições doutrinárias que a eles se referem. Aqui o fetichismo ganha ainda maior dimensão. Decorrente de uma vulgata positivista que importou seletivamente Kelsen, a visão dominante é autista em relação ao que está além das redações normativas do sistema jurídico vigente. Limitados – na melhor das hipóteses – a um estudo sintático-semântico das normas jurídicas, os alunos tem sua criatividade reiteradamente podada, visto que se restringem a um “enfoque a posteriori, que toma o direito como um dado” (FERRAZ JR., 2015, p. 56).

Nessa fase os alunos se deparam com uma tentativa absurda de conhecer (sic) holisticamente as regras que compõe o ordenamento jurídico do país num dado momento. Além de vã, dada a hipercomplexidade das relações sociais no mundo moderno globalizado e a efemeridade das normas jurídicas que as regulam, essa tentativa se mostra conservadora, ao se revelar acrítica, pouco reflexiva e anticriativa, isso é, perpetuadora das formas postas.

Parece claro que a faceta do ensino jurídico que se pretende criticar é aquela que mantém estanque teoria e prática jurídica, enfoque zetético e enfoque dogmático, ser e dever ser. Em suma, a metodologia desprovida de organicidade e que cerceia a criatividade do aluno, ao lhe manter alheio aos problemas que surgem e incapaz de lidar juridicamente com aqueles sobre os quais toma conhecimento.

Já se apontou à falta de iniciativa institucional no sentido de alterar o sistema de ensino jurídico vigente. Disso decorre o caráter singelo e, prima facie, pouco pretensioso da sugestão que aqui se apresenta, em vista que deve partir do polo geralmente passivo na relação de ensino.

Em suma, o que se propõe é que os alunos tomem iniciativas de criação de grupos de estudo paralelos às grades curriculares oficiais que possam atribuí-las algum caráter orgânico. Em um primeiro momento, os grupos deveriam se debruçar sobre aportes teóricos de base, articulando-os com problemas em voga em seu contexto social. Ao fazê-lo, devem ter mente carências dos currículos formais de suas respectivas instituições, organizando-se para supri-las.

Nessa etapa inicial, devem prezar pelo estudo das meta-linguagens que compõe o universo do conhecimento jurídico, tal como a História do Direito, Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito, Criminologia, etc., sem vincularem-se, no entanto, a divisões formais de conteúdo dentre essas disciplinas. Trata-se na verdade de empreendimento transdisciplinar.

Em um segundo momento, já com arcabouço teórico-analítico trabalhado, as empresas devem se voltar à articulação das meta-linguagens acima referidas com as linguagens jurídicas oficiais – as normas vigentes. Nessa fase, importa o caráter pragmático, voltado à solução de conflitos que emergem no seio social e não tem atenção adequada pelo currículo oficial ou solução adequada pelo direito vigente. Da transdisciplinariedade parte-se aqui para uma interproblematicidade. Começam a surgir os loci de atuação do jurista criativo proposto por Daniel Vargas (2014).

Eventualmente, um terceiro estágio de modelo dos grupos de estudos aqui propostos buscaria o mais alto nível reflexivo, aquele que colocaria em análise o próprio modus operandi dos grupos de estudo e sua eficácia aos fins que se propõe. Trata-se de uma auto-reflexão, acompanhada do estudo basilar dos problemas de metodologia do ensino jurídico em si.

A criação de espaços não institucionais para estudos que possam ajudar a dar significação ao ensino tradicional pode se transformar, paulatinamente, em uma verdadeira revolução no ensino jurídico. Em todos os aspectos: i) conferir maior abertura das faculdades a problemas contemporâneos; ii) propiciar maior organicidade aos currículos oficiais, ao rearticular seus conteúdos em torno da unidade do fenômeno jurídico; iii) favorecer uma postura mais pragmática do estudo do direito, ao conciliar linguagem e meta-linguagem jurídica em prol da solução de um dado problema; e, por fim, iv) questionar a posição passiva do aluno em seu processo de formação, ao passo que os próprios membros dos grupos escolhem ativamente os temas a serem abordados, livros a serem estudados e questões a serem debatidas, da mesma maneira em que os encontros se dão através do método participativo, em oposição ao tradicional expositivo.

Dessa forma, embora singela seja a sugestão, vem carregada de esperança. É na verdade uma pequena semente a ser plantada. Que alguns poucos alunos cultivem essa árvore em suas instituições, organizando grupos nesses moldes, é um começo. A qualidade de seus frutos cabe ao tempo revelar.





* Graduando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail para contato: marcotoresan_2@hotmail.com. Endereço eletrônico para acesso ao currículo na plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/4496657390347232.
[1] O presente paper foi originalmente escrito como conclusão ao I Curso de Inverno da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). Responde-se aqui às provocações levantadas na mesa de debates “Inovações na Educação Jurídica”, composta pelos Profs. Carlos Ragazzo e Diego Werneck Arguelhes, assim como aos levantamentos feitos pelo Prof. Daniel Vargas na aula “Sociedade Criativa”.
[2] Cf., por exemplo, FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1987. Quase três décadas se passaram e a obra é mais atual que nunca.
[3] Cf. BISSOLI FILHO, Francisco. O objeto da ciência do direito penal – descrição – crítica – reconfiguração. Florianópolis: Empório do Direito, p. 178-179, 2015.

2 comentários:

  1. Muito bem redigido, excelente propostas, e é muito motivante, saber que tenho dito a oportunidade de estudar com pessoas que se preocupam com o ensino do Direito no nosso país. Direito é muito mais do que apenas códigos a serem analizados ou verificados, direito é história,conhecimento, princípios, é sociedade!!!

    Parabéns man

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