sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O ALUNO [REAL] NOS CURSOS DE DIREITO


Por André Lucas Fernandes, um inconformado aluno de direito.




PARA SITUAR A CONVERSA


Com base nos textos recentes publicado por Lênio Streck em sua coluna “Senso Incomum”, tive a ideia de falar, de forma bastante descompromissada, sobre o tipo ideal (o)posto ao que ele tentou desenhar. 


O certo seria começar pelo personagem do professor real – aqui não um protótipo, pois o que está nas universidades é o resultado de um lento processo de maturação voltada ao apodrecimento cerebral. Pelo professor, sim, pois apesar do pacto da mediocridade exigir duas partes para uma avença “clássica”, a balança pesa muito mais para o lado daquele que ensina. 


Entendo que a culpa do professor diminui com o passar do tempo e amadurecimento do aluno – seja culturalmente, seja temporalmente. Todo aluno de direito passa por um momento epifânico em que decide se investirá no modelo podre que lhe é oferecido ou se vai resistir a ele, das formas mais variadas. Razões e razões, mas não começarei pelos docentes e sim pelos discentes, com os quais convivo e divido virtudes e vícios. 


Importa alertar aos apressados: existem alunos que resistem ao que aí está, de forma criativa ou violenta. Contudo, nenhum aluno está imune ao uso de práticas que serão descritas logo abaixo de forma prolixamente resumida. Na verdade, para certas cadeiras é necessário utilizar de certos estratagemas – que Eduardo Siebra, um ex-aluno da Faculdade de Direito do Recife, chamou por Realedukation


Eu quero me dedicar, de fato, ao aluno que usa dessas estratégias como primeira e única forma de ser na Faculdade. O que ele leva e deixa na faculdade é o muito de alguma coisa: o imprestável. Siebra diria que são os “jatos quentes e espumantes de fezes que saem das bocas dos professores” e são reproduzidos por alunos... Ou algo do tipo. Eis os hábitos desse espécime especial dentro do espécime geral “estudante universitário”. 


O ALUNO [REAL] DE DIREITO


Começando pelo começo. O aluno de direito entende que, ao vencer no concurso do vestibular, ganha passe livre e direito eterno sobre uma vaga gratuita num curso de graduação de uma Instituição de Ensino Superior (IES).
 

Isso quer dizer muita coisa. Desdobremos: apesar de vencer uma concorrência e deixar um mar de gente do lado de fora da universidade, o aluno não tem qualquer compromisso social com a desigualdade que se instala a partir daí. Claro, como todo assunto social, a questão se desdobra. 


Se a vaga é dele, então o uso e o gozo dela são seus durante todo o tempo que entender necessário para satisfazer suas pretensões. Será de cinco anos contados – e só será cinco se a Faculdade não descumprir a disposição do Ministério da Educação permitindo que o aluno se forme em ligeiros quatro anos e um semestre. Claro! Direito é realmente um assunto bem fácil. Do outro lado, o curso deve durar mais tempo se o aluno entender que deve defender todas as causas urgentes que a sociedade reclama. Questões que são realmente importantes, na maioria dos casos, mas que fazem esse aluno esquecer que passar 6, 7, 8 anos dentro de uma IES é onerar os cofres públicos por motivos que não são, exatamente, a melhor formação acadêmica possível. Afinal, é bom pontuar, a atuação política não se restringe a estar na Universidade, pelo contrário. Por vezes ela até se torna mais qualificada quando se apresenta o canudo do diploma, seja por questões de forma, seja por questões de fundo.


O aluno real de direito reclama desde o primeiro trabalho que recebe a incumbência de executar. Não tem o menor sentimento de resignação, nem de gana após conquistar uma cobiçada vaga na Universidade. Tudo é muito “trabalhoso”, tudo é muito “problemático”. 

Para o aluno real, o professor performático exigir uma leitura em espanhol é uma afronta. Um absurdo! O aluno não questiona ao professor possibilidades de leitura em português, ou, quando de uma resposta negativa e uma ironia, o aluno não busca uma aliança estudantil para sanar as dificuldades de todos. Não. Afinal, desde antes da Universidade, até depois dela, é preciso, regra geral, preservar a disputa concurseira, ainda que todos nós possamos tomar uma cerveja gelada no bar mais próximo e nos abraçarmos falando doces cantilenas e bobagens saudáveis.


O aluno real de direito não entende o motivo de ter que assistir às aulas de Introdução ao Estudo do Direito. Suspeita gravemente de todas essas cadeiras que chamam “zetéticas”, por causa do maldito Tércio Sampaio Ferraz Jr. – mas o autor merece respeito, por que é titular da USP e um parecerista disputado aos tapas e milhares de reais – a última informação é muito cara ao estudante de direito.


História do Direito, Psicologia Jurídica, Antropologia Jurídica e afins são cadeiras que estão ali para atrapalhar e impedir o labor jurídico efetivo, ou seja, ler a lei e os códigos num calhamaço ignorante e burro (a.k.a Vade Mecum) – que seria de melhor serventia como suporte para uma mesa descompensada ou como escudo contra balas, facas e afins... Suspeito que nada passa por um Vade Mecum.


O aluno real de direito tem um critério assaz peculiar de avaliação qualitativa das aulas. Para esse aluno, o professor que senta a bunda na cadeira e inicia uma sessão de tortur- digo, aula, lendo e relendo os dispositivos escritos naquelas folhas finas, vez ou outra fazendo alguma observação – que não vai além da paráfrase do artigo do código tal ou qual – dá uma aula BOA


Normalmente esse professor não tem, sequer, uma oratória de mínima qualidade, que dê aquele toque de mágica a uma aula expositiva verdadeiramente inútil. Mas sobre o professor falarei outra hora.


O aluno de direito ouve no primeiro período que nossa “ciência” – melhor seria chamar de arte e má arte, ou arte linha de produção – é muito complicada e depende muito de diferentes interpretações, por isso é necessário perquirir sempre mais de um autor sobre o mesmo tema, especialmente aqueles que têm opiniões opostas. 


Talvez o efeito “pedagógico” do conselho dure alguns meses, mas logo é apagado. É uma gradação que beira a seleção natural: primeiro o estudante, que fez enorme esforço nesse processo, abandona o segundo manual que usava como comparativo de estudo. Após, abandona o primeiro manual de estudo, para se dedicar à leitura de alguma sinopse ou resumo dos colegas. E, por fim, sem muita demora, recorre ao expediente da fila, sem pudor, nem dó. 


Importante lembrar, para quem tem a paciência de ler até aqui, não se trata de uma atitude de resistência a aulas patéticas (a realedukation mencionada antes), mas de prática constitutiva do ser na Universidade. O autodidatismo de Eduardo Siebra tem como objetivo selecionar o tempo para aprofundar em leituras sobre sociologia, antropologia, literatura, economia, ou, até mesmo, boas leituras de Direito (que não faltam!). Mas a prática do estudante descrito neste texto termina nela mesma, não tem motivo além. Minto! Se selecionar o tempo é com o objetivo de estudar para concursos ou não fazer absolutamente nada.


Outro detalhe sobre a relação do aluno de direito com as aulas, mesmo com as boas aulas, durante o curso: elas não são mais importantes que o celular, o Whatsapp, as enormes encadernações com questões de concurso, a conversa sobre qualquer outro assunto – dentro e fora da sala. 


Isso quando o aluno vai até a aula. Afinal, o aluno REAL de direito falta o máximo de aulas que puder. Qualquer motivo é motivo, qualquer desculpa é desculpa: a aula não serve para nada – na maioria dos casos isso não é uma mentira, preciso concordar.


O aluno nos cursos jurídicos lida de forma muito interessante com os livros-texto conhecidos por “manuais”. São livros de uma doutrina capenga e de má qualidade, cuja abordagem não excede ao comentário parafrásico do que está escrito na lei. Não demora muito tempo o aluno também realiza uma espécie de seleção natural dentro do estudo de manuais. Exemplifico: Quanto ao Direito Constitucional, se nunca folheou um Canotilho, no máximo lê um José Afonso da Silva – com muita sorte e luz e energia cósmica positiva! – e logo descamba para um Simplificado ou Esquematizado qualquer. Sabe como é, existe um motivo racional: é o livro indicado para concursos. Tem questões da OAB, CESPE e o escambau.


O que falar das filas, de modo a pontuá-las com destaque? Afinal, o recurso da fila é o que verdadeiramente forma o aluno de Direito. A fila é construída num processo de experienciação complexo e sofisticado. Os métodos são variados: tem a fila que é a marcação dos artigos no Vade Mecum, ou aquela que vai escondida entre as páginas do calhamaço inútil. Quando a prova não permite consulta, o recurso é a impressão de resumos em pequenas folhas, fonte tamanho 5 ou menor, cabe na palma da mão, na capa do celular. Tem aqueles que filam com o livro embaixo da banca. Outros preferem usar o celular e as maravilhas tecnológicas da conexão 3/4G. Quando mais de uma turma faz a mesma prova, elas são compartilhadas pelo celular. Um exercício de cândida solidariedade. Uma reflexão coletiva que lembra, vejam que engraçado: o estudo! 


Sim! Por que não adianta estudar antes, é preciso selecionar o tempo escasso e estudar durante a prova, coletivamente. Ao fim e ao cabo a fila é exatamente isso. O problema é que suas preocupações são estritamente práticas e voltadas a uma resposta satisfatória a uma questão mínima diante de um universo imenso que cada cadeira representa. Mas não vou desenvolver esse ponto, fica o “elogio”.


O aluno de direito, ainda que seja uma boa aula, prefere passar o tempo fora de sala, pelos corredores dos prédios. Amplia algo que será bem mais importante: a sua rede de contatos. Os assuntos são variados: futebol, política, movimento estudantil, festas, campeonatos, moças, rapazes, fofocas – assunto top 5 na balada jurídica das IES –, o estágio... ah, o estágio!


O estágio é um objeto de desejo, é o primeiro passo daquilo que realmente importa. É uma emulação do mercado de trabalho jurídico. O estágio permitirá, antes de tudo, usar roupa social por um motivo “sério”. Habemus camisa social, calça social, cinto e sapatos lustrados. Um luxo! 


O aluno REAL de direito entende que tudo que está posto na sala de aula não serve de nada – novamente, tendo a concordar, mas uma coisa não justifica a outra, não é? O aprendizado acontece no mercado, trabalhando. O quanto antes melhor! O tempo é curto e a maravilha da medicina, que posterga a vida e atrasa o relógio da morte, deve ser usada para fruir um status de elite, uma conta bancária minimamente gorda; ostentadora de, no mínimo, quatro dígitos para cima. Calma lá, nobre colega! Estamos no mundo do estágio e só alguns poucos rompem a barreira dos hum mil reais


Você não sabia, leitor? Os estágios na área de direito superam facilmente a barreira da bolsa-pobre dos PIBICs, PIBITs e PETs ou qualquer sigla que faça alusão a um programa acadêmico. Quatrocentos reais é valor de bolsa para um aluno de direito no começo do curso. A classe se valoriza.


Não importa, é fato aferível, que o aluno esteja ainda no primeiro período. Se ele tem família que trabalha no meio, é batata! Por que perder tempo? Afinal, o que importa esse blábláblá sobre positivismo jurídico? E essa coisa de direito natural? Essa ideia, absurda!, de retórica e decisionismo? Hermenêutica? Existência, validade, eficácia? Do que adianta isso? Eu descubro na prática, “manuseando os processos”, o que é um prazo prescricional. O que é o fenômeno da decadência. Eu não estou nem pensando em entrar no mérito “da vida das pessoas”, pois o aluno de direito lida com NORMAS e não com VIDAS.


Não importa – eu, insisto – saber sobre a origem dos institutos. Não importa saber o que e como Roma aplicava aquele mesmo instrumento que usamos hoje, dois mil anos depois. Não importa saber o que mudou e por que mudou. Saber que a decisão do Juiz tem uma consequência política? O juiz faz um trabalho técnico, aplica a justiça, não é isso? É isso. O aluno médio acredita. E se não acredita, diz que acredita por que dá menos trabalho


Esse aluno sabe que, da mesma forma que a entrada na Universidade foi mérito exclusivo seu – no máximo de papai e mamãe que trabalham MUITO para pagar sua formação! –, uma aprovação em concurso também é mérito seu. A investidura é sua. O poder é seu. Não tem nada a ver ter as pretensões de resolução de problemas populares. Na verdade o populacho quando não é burro, fedido ou simplesmente invisível, se transforma em verdadeira ameaça comunista! Sim... São tantos anos e ainda estamos ameaçados pelos comunistas comedores de criança e usurpadores da Democracia que Democracia, cara pálida?!


Esse aluno ignora o povo, pois acha que o povo não tem nada a ver com a sua educação numa universidade pública – o povo é tão pobre que não paga nem imposto! E ainda recebe bolsa família!. Estranho é que a realidade é outra: quando um marginalizado qualquer paga um saco de pão, um saco de feijão pra saciar a boca de não sei quantos, quando paga por uma pinga no bar, ele paga imposto, está lá. Como todo e qualquer um na sociedade, ele também sustenta a universidade pública. A diferença é que alguns não são agraciados com o manto da invisibilidade. 


Tal questão está umbilicalmente envolvida com a percepção, por esse estudante que descrevo, da desnecessidade da extensão e da pesquisa. O aluno de direito acha que aquela disposição da constituição “obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” é balela e desnecessária. Passar pela Academia é passar pelo ensino podre e correr para o mercado de trabalho. A extensão é terra de cooptação política e vagabundos e a pesquisa é o reino dos pedantes. Não produzem nada de valor. O valor das coisas é uma régua muito importante para esse sujeito que tento descrever aqui.


O aluno real de direito é assim. São muitos detalhes, muitos hábitos que demandam atenção e estudo sociopsicológico, levantamentos exaustivos e muito divertidos. Mas eu me comprometi a escrever um texto de baixa qualidade e isso me basta. 


As páginas se alongaram, numa leitura monótona e, em nada inovadora, tal qual a vida do aluno REAL de direito. Esse aluno nasceu para conquistar... Estudo e resolução de problemas sociais é coisa de sociólogo.








PS: A parte do estudo para os sociólogos é falsa, afinal todo mundo sabe que, no caso da UFPE, o pessoal do CFCH é tudo vagabundo e maconheiro. Isso não deve variar muito da média brasileira.

PS²: Você se sentiu ofendido pelo relato acima? Por favor, não fique com raiva de mim, pois eu vou, no máximo, ignorar você. Você achou ruim o relato acima? Aguarde a segunda parte que vai falar sobre o Professor REAL no mundo do direito... Cenas [pavorosas] do próximo capítulo!

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A autossuficiência jurídica



Por Ednaldo Silva

Ainda no início do curso, eu e uns amigos combinamos que nos policiaríamos para não nos tornarmos algo como um "jurista por excelência": aquele que durante o dia lê processos e mais processos, e, no happy hour, entre os goles de cerveja, tem como principal diversão glosar sobre suas narrativas preferidas: processos. Doce ilusão. Me lembrei disso há um tempo atrás, quando eu e esses mesmos amigos saímos e alguns comentavam sobre suas experiências com "processos absurdos", onde se destacavam ora o uso indevido do caps lock, ora histórias e expressões um tanto esdrúxulas. Não foi nada que me incomodasse, sequer durou tanto tempo, é verdade. Mas, além do tal combinado, me lembrou do quanto, às vezes, me parece que ver o mundo para além do Direito é uma atividade extremamente difícil pros juristas.

Afinal de contas, os juristas são autossuficientes. Cheguei a essa conclusão depois que, assombrado, vi alguns deles reduzindo a proposta de uma assembleia constituinte exclusiva às lentes jurídicas: "isso é um absurdo jurídico, não pode ocorrer, afinal como pode um poder constituinte limitado?!". Muitos sequer discutiam se tal formato era útil ou cabível, politicamente falando, de forma que levei um susto ao ver sujeitos querendo submeter um fenômeno político, em toda sua complexidade,  aos conceitos jurídicos e todas as suas limitações, no mínimo, epistemológicas.

Se talvez tivessem exercitado um pouco mais a interdisciplinaridade, percebessem como poderiam ser identificados como maus escritores: o bom escritor sabe que, embora certas metáforas nunca percam a beleza por mais antigas que sejam — como o "amor é fogo que arde sem se ver", ou, no caso do nosso direito, a tal "clareza da lei" —, outras metáforas — como o "asa da xícara", ou, sendo um jurista, a tal constituinte que, de tão ilimitada, sequer pode se limitar —, com o passar do tempo não atendem mais à "ânsia criativa" dos leitores e precisam ser deixadas de lado pelo sujeito que escreve, que deverá buscar outras alternativas.

Mas o aluno de Direito, hoje, não compreende a interdisciplinaridade, embora muitas vezes se esforce. Debatemos a legalidade das cotas raciais em prol da interdisciplinaridade; debatemos a constitucionalidade do casamento homoafetivo em prol da interdisplinaridade; debatemos a legislação tributária e seus entraves ao empreendedorismo em prol da interdisciplinaridade. Mas, na verdade, em nenhum desses momentos fomos interdisciplinares. Em nenhum desses momentos conhecemos outro vocabulário, outros conceitos, ou outras visões de mundo. Na maioria das vezes sequer conhecemos outra pessoas que não um jurista, visto que, normalmente, são eles que, vestidos com suas elegantes roupas formais, ocupam as mesas dos eventos que, preocupados, trazem a interdisciplinaridade até nossas faculdades.

Submeter aos conceitos jurídicos um tema que não é de "natureza jurídica" não é ser interdisciplinar. E isso é um agravante na medida em que nós precisamos ser interdisciplinares. Embora o conhecimento jurídico não seja capaz de expressar todo o mundo, nós, juristas, resolvemos regrar todo o mundo. E, dada tal responsabilidade, precisamos conhecer bem mais do que "apenas" direito, mas também história, literatura, política, economia... Porém, não conhecemos e, aparentemente, demoraremos a partir em busca destes conhecimentos.

Em meio a tudo isso, me vem a cabeça uma anedota que Tom Jobim contava: ele dizia que assim que a fama começou a surgir, às vezes não era suficiente se apresentar como Tom Jobim, então ele complementava, "Tom do Vinicius"; e isso sem vergonha alguma por se "escorar" no amigo mais conhecido. Esperto, Tom sabia que ninguém pode ser alguém sozinho.