Por André Lucas Fernandes, um inconformado aluno de direito.
PARA SITUAR A CONVERSA
Com base nos textos recentes
publicado por Lênio Streck em sua coluna “Senso Incomum”, tive a ideia de
falar, de forma bastante descompromissada, sobre o tipo ideal (o)posto ao que
ele tentou desenhar.
O certo seria começar pelo
personagem do professor real – aqui não um protótipo, pois o
que está nas universidades é o resultado de um lento processo de maturação
voltada ao apodrecimento cerebral. Pelo professor, sim, pois apesar do pacto da mediocridade exigir duas
partes para uma avença “clássica”, a balança pesa muito mais para o lado daquele
que ensina.
Entendo que a culpa do
professor diminui com o passar do tempo e amadurecimento do aluno – seja
culturalmente, seja temporalmente. Todo aluno de direito passa por um momento epifânico em que decide se investirá no
modelo podre que lhe é oferecido ou se vai resistir a ele, das formas mais
variadas. Razões e razões, mas não começarei pelos docentes e sim pelos
discentes, com os quais convivo e divido virtudes e vícios.
Importa alertar aos
apressados: existem alunos que resistem ao
que aí está, de forma criativa ou violenta. Contudo, nenhum aluno está imune ao uso de práticas que serão
descritas logo abaixo de forma prolixamente resumida. Na verdade, para certas
cadeiras é necessário utilizar de certos estratagemas – que Eduardo Siebra, um
ex-aluno da Faculdade de Direito do Recife, chamou por Realedukation.
Eu quero me dedicar, de
fato, ao aluno que usa dessas estratégias como primeira e única forma de ser na
Faculdade. O que ele leva e deixa na
faculdade é o muito de alguma coisa: o imprestável. Siebra diria que são os “jatos
quentes e espumantes de fezes que saem das bocas dos professores” e são
reproduzidos por alunos... Ou algo do tipo. Eis os hábitos desse espécime
especial dentro do espécime geral “estudante universitário”.
O ALUNO [REAL] DE DIREITO
Começando pelo começo. O aluno de direito entende que, ao vencer
no concurso do vestibular, ganha passe livre e direito eterno sobre uma vaga
gratuita num curso de graduação de uma Instituição de Ensino Superior (IES).
Isso quer dizer muita coisa.
Desdobremos: apesar de vencer uma concorrência e deixar um mar de gente do lado
de fora da universidade, o aluno não tem qualquer compromisso social com a
desigualdade que se instala a partir daí. Claro, como todo assunto social, a
questão se desdobra.
Se a vaga é dele, então o uso e o gozo dela são
seus durante todo o tempo que entender necessário para satisfazer suas
pretensões. Será de cinco anos
contados – e só será cinco se a Faculdade não descumprir a disposição do
Ministério da Educação permitindo que o aluno se forme em ligeiros quatro anos
e um semestre. Claro! Direito é
realmente um assunto bem fácil. Do outro lado, o curso deve durar mais
tempo se o aluno entender que deve defender todas as causas urgentes que a
sociedade reclama. Questões que são realmente importantes, na maioria dos
casos, mas que fazem esse aluno esquecer que passar 6, 7, 8 anos dentro de uma IES é onerar os cofres públicos por
motivos que não são, exatamente, a melhor formação acadêmica possível. Afinal,
é bom pontuar, a atuação política não se restringe a estar na Universidade, pelo contrário. Por vezes ela até se torna
mais qualificada quando se apresenta o canudo do diploma, seja por questões de
forma, seja por questões de fundo.
O aluno real de direito
reclama desde o primeiro trabalho que recebe a incumbência de executar. Não tem
o menor sentimento de resignação, nem
de gana após conquistar uma cobiçada
vaga na Universidade. Tudo é muito “trabalhoso”, tudo é muito “problemático”.
Para o aluno real, o
professor performático exigir uma leitura em espanhol é uma afronta. Um
absurdo! O aluno não questiona ao professor possibilidades de leitura em
português, ou, quando de uma resposta negativa e uma ironia, o aluno não busca
uma aliança estudantil para sanar as dificuldades de todos. Não. Afinal, desde
antes da Universidade, até depois dela, é preciso, regra geral, preservar a
disputa concurseira, ainda que todos nós possamos tomar uma cerveja gelada no
bar mais próximo e nos abraçarmos falando doces cantilenas e bobagens
saudáveis.
O aluno real de direito não
entende o motivo de ter que assistir às aulas de Introdução ao Estudo do
Direito. Suspeita gravemente de todas essas cadeiras que chamam “zetéticas”,
por causa do maldito Tércio Sampaio Ferraz Jr. – mas o autor merece respeito,
por que é titular da USP e um parecerista disputado aos tapas e milhares de
reais – a última informação é muito cara ao estudante de direito.
História do Direito,
Psicologia Jurídica, Antropologia Jurídica e afins são cadeiras que estão ali
para atrapalhar e impedir o labor jurídico efetivo, ou seja, ler a lei e os
códigos num calhamaço ignorante e burro (a.k.a
Vade Mecum) – que seria de melhor serventia como suporte para uma mesa
descompensada ou como escudo contra balas, facas e afins... Suspeito que nada
passa por um Vade Mecum.
O aluno real de direito tem um critério assaz peculiar de avaliação
qualitativa das aulas. Para esse aluno, o professor que senta a bunda na cadeira
e inicia uma sessão de tortur- digo, aula, lendo e relendo os dispositivos
escritos naquelas folhas finas, vez ou outra fazendo alguma observação – que
não vai além da paráfrase do artigo do código tal ou qual – dá uma aula BOA.
Normalmente esse professor
não tem, sequer, uma oratória de mínima qualidade, que dê aquele toque de
mágica a uma aula expositiva verdadeiramente inútil. Mas sobre o professor
falarei outra hora.
O aluno de direito ouve no
primeiro período que nossa “ciência” – melhor seria chamar de arte e má arte,
ou arte linha de produção – é muito complicada e depende muito de diferentes
interpretações, por isso é necessário perquirir sempre mais de um autor sobre o
mesmo tema, especialmente aqueles que têm opiniões opostas.
Talvez o efeito “pedagógico”
do conselho dure alguns meses, mas logo é apagado. É uma gradação que beira a
seleção natural: primeiro o estudante, que fez enorme esforço nesse processo,
abandona o segundo manual que usava como comparativo de
estudo. Após, abandona o primeiro manual de estudo, para se dedicar à
leitura de alguma sinopse ou resumo dos colegas. E, por fim,
sem muita demora, recorre ao expediente da fila,
sem pudor, nem dó.
Importante lembrar, para
quem tem a paciência de ler até aqui, não se trata de uma atitude de
resistência a aulas patéticas (a realedukation
mencionada antes), mas de prática constitutiva do ser na Universidade. O autodidatismo de Eduardo Siebra tem como
objetivo selecionar o tempo para aprofundar em leituras sobre sociologia,
antropologia, literatura, economia, ou, até mesmo, boas leituras de Direito
(que não faltam!). Mas a prática do estudante descrito neste texto termina nela
mesma, não tem motivo além. Minto! Se selecionar o tempo é com o objetivo de estudar
para concursos ou não fazer absolutamente nada.
Outro detalhe sobre a
relação do aluno de direito com as aulas, mesmo com as boas aulas, durante o
curso: elas não são mais importantes que o celular, o Whatsapp, as enormes
encadernações com questões de concurso, a conversa sobre qualquer outro assunto
– dentro e fora da sala.
Isso quando o aluno vai até a aula. Afinal, o aluno REAL de direito
falta o máximo de aulas que puder. Qualquer motivo é motivo, qualquer desculpa
é desculpa: a aula não serve para nada – na maioria dos casos isso não é uma
mentira, preciso concordar.
O aluno nos cursos jurídicos
lida de forma muito interessante com os livros-texto conhecidos por “manuais”.
São livros de uma doutrina capenga e de má qualidade, cuja abordagem não excede
ao comentário parafrásico do que está
escrito na lei. Não demora muito tempo o aluno também realiza uma espécie de
seleção natural dentro do estudo de manuais. Exemplifico: Quanto ao Direito Constitucional,
se nunca folheou um Canotilho, no máximo lê um José Afonso da Silva – com muita
sorte e luz e energia cósmica positiva! – e logo descamba para um Simplificado
ou Esquematizado qualquer. Sabe como é, existe um motivo racional: é o livro
indicado para concursos. Tem questões da OAB, CESPE e o escambau.
O
que falar das filas, de modo a pontuá-las com destaque?
Afinal, o recurso da fila é o que verdadeiramente forma o aluno de Direito. A
fila é construída num processo de experienciação complexo e sofisticado. Os
métodos são variados: tem a fila que é a marcação dos artigos no Vade Mecum, ou
aquela que vai escondida entre as páginas do calhamaço inútil. Quando a prova
não permite consulta, o recurso é a impressão de resumos em pequenas folhas,
fonte tamanho 5 ou menor, cabe na palma da mão, na capa do celular. Tem aqueles
que filam com o livro embaixo da banca. Outros preferem usar o celular e as
maravilhas tecnológicas da conexão 3/4G. Quando mais de uma turma faz a mesma
prova, elas são compartilhadas pelo celular. Um exercício de cândida solidariedade.
Uma reflexão coletiva que lembra, vejam que engraçado: o estudo!
Sim! Por que não adianta
estudar antes, é preciso selecionar o tempo escasso e estudar durante a prova,
coletivamente. Ao fim e ao cabo a fila é exatamente isso. O problema é que suas
preocupações são estritamente práticas e voltadas a uma resposta satisfatória a
uma questão mínima diante de um universo imenso que cada cadeira representa.
Mas não vou desenvolver esse ponto, fica o “elogio”.
O aluno de direito, ainda
que seja uma boa aula, prefere passar o tempo fora de sala, pelos corredores
dos prédios. Amplia algo que será bem mais importante: a sua rede de contatos. Os assuntos são variados:
futebol, política, movimento estudantil, festas, campeonatos, moças, rapazes,
fofocas – assunto top 5 na balada jurídica das IES –, o estágio... ah, o
estágio!
O estágio é um objeto de desejo, é o primeiro passo daquilo que
realmente importa. É uma emulação do mercado de trabalho jurídico. O estágio
permitirá, antes de tudo, usar roupa social por um motivo “sério”. Habemus camisa social, calça social,
cinto e sapatos lustrados. Um luxo!
O aluno REAL de direito
entende que tudo que está posto na sala de aula não serve de nada – novamente,
tendo a concordar, mas uma coisa não justifica a outra, não é? O aprendizado
acontece no mercado, trabalhando. O quanto antes melhor! O tempo é curto e a
maravilha da medicina, que posterga a vida e atrasa o relógio da morte, deve
ser usada para fruir um status de elite,
uma conta bancária minimamente gorda; ostentadora de, no mínimo, quatro dígitos
para cima. Calma lá, nobre colega!
Estamos no mundo do estágio e só alguns poucos rompem a barreira dos hum mil reais.
Você não sabia, leitor? Os
estágios na área de direito superam facilmente a barreira da bolsa-pobre dos
PIBICs, PIBITs e PETs ou qualquer sigla que faça alusão a um programa
acadêmico. Quatrocentos reais é valor de bolsa para um aluno de direito no
começo do curso. A classe se valoriza.
Não importa, é fato aferível,
que o aluno esteja ainda no primeiro período. Se ele tem família que trabalha
no meio, é batata! Por que perder tempo? Afinal, o que importa esse blábláblá
sobre positivismo jurídico? E essa coisa de direito natural? Essa ideia,
absurda!, de retórica e decisionismo? Hermenêutica? Existência, validade,
eficácia? Do que adianta isso? Eu descubro na prática, “manuseando os processos”,
o que é um prazo prescricional. O que é o fenômeno da decadência. Eu não estou
nem pensando em entrar no mérito “da vida das pessoas”, pois o aluno de direito
lida com NORMAS e não com VIDAS.
Não importa – eu, insisto –
saber sobre a origem dos institutos. Não importa saber o que e como Roma
aplicava aquele mesmo instrumento que usamos hoje, dois mil anos depois. Não
importa saber o que mudou e por que mudou. Saber que a decisão do Juiz tem uma consequência
política? O juiz faz um trabalho técnico, aplica a justiça, não é isso? É isso.
O aluno médio acredita. E se não acredita,
diz que acredita por que dá menos trabalho.
Esse aluno sabe que, da
mesma forma que a entrada na Universidade foi mérito exclusivo seu – no máximo
de papai e mamãe que trabalham MUITO para pagar sua formação! –, uma aprovação
em concurso também é mérito seu. A investidura é sua. O poder é seu. Não tem
nada a ver ter as pretensões de resolução de problemas populares. Na verdade o
populacho quando não é burro, fedido ou simplesmente invisível, se transforma
em verdadeira ameaça comunista! Sim... São tantos anos e ainda estamos
ameaçados pelos comunistas comedores de criança e usurpadores da Democracia – que Democracia, cara pálida?!
Esse aluno ignora o povo,
pois acha que o povo não tem nada a ver com a sua educação numa universidade
pública – o povo é tão pobre que não paga nem imposto! E ainda recebe bolsa
família!. Estranho é que a realidade é outra: quando um marginalizado qualquer
paga um saco de pão, um saco de feijão pra saciar a boca de não sei quantos,
quando paga por uma pinga no bar, ele paga imposto, está lá. Como todo e
qualquer um na sociedade, ele também sustenta a universidade pública. A
diferença é que alguns não são agraciados com o manto da invisibilidade.
Tal questão está
umbilicalmente envolvida com a percepção, por esse estudante que descrevo, da
desnecessidade da extensão e da pesquisa. O aluno de direito acha que
aquela disposição da constituição “obedecerão
ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” é
balela e desnecessária. Passar pela Academia é passar pelo ensino podre e correr
para o mercado de trabalho. A extensão é terra de cooptação política e vagabundos e a pesquisa é o reino dos pedantes. Não produzem nada de valor. O
valor das coisas é uma régua muito importante para esse sujeito que tento
descrever aqui.
O aluno real de direito é
assim. São muitos detalhes, muitos hábitos que demandam atenção e estudo sociopsicológico,
levantamentos exaustivos e muito divertidos. Mas eu me comprometi a escrever um
texto de baixa qualidade e isso me basta.
As páginas se alongaram,
numa leitura monótona e, em nada inovadora, tal qual a vida do aluno REAL de
direito. Esse aluno nasceu para conquistar... Estudo e resolução de problemas
sociais é coisa de sociólogo.
PS:
A parte do estudo para os sociólogos é falsa, afinal todo mundo sabe que, no
caso da UFPE, o pessoal do CFCH é tudo vagabundo e maconheiro. Isso não deve
variar muito da média brasileira.
PS²: Você se sentiu ofendido pelo relato acima? Por favor, não fique com raiva de mim, pois eu vou, no máximo, ignorar você. Você achou ruim o relato acima? Aguarde a segunda parte que vai falar sobre o Professor REAL no mundo do direito... Cenas [pavorosas] do próximo capítulo!