Reflexões sobre a crise do ensino jurídico brasileiro – proposta singela para uma saída. [1]
Por Marco Antonio Toresan*
É interessante como os apontamentos sobre os problemas
do ensino jurídico brasileiro repetem-se na literatura de forma mais ou menos
homogênea há muito tempo[2].
Muito embora a crítica ao modelo posto não seja unívoca, existem determinados
pontos de convergência nos discursos sobre a crise do ensino jurídico. Nada
obstante, poucas medidas institucionais se dão no sentido de alterar o status quo.
A relação de conteúdos e a forma pela qual eles são
distribuídos em uma grade curricular engessada e excessivamente segmentada
culminam em uma “abordagem enciclopédica, exegética, escolástica [e um tanto
quanto autista] do direito positivo vigente” (UNGER, 2006, p. 118). Isso, pois
há uma estéril transposição de um problema epistemológico entre zetética e
dogmática jurídica para a metodologia de ensino dos professores nas escolas de
direito. Esses dois enfoques teóricos são tratados pelos professores numa espécie
de divisão alopátrica, contribuindo para a fragmentarização e
descontextualização do conhecimento jurídico produzido nas faculdades de
direito do país[3].
Em um primeiro momento, as chamadas disciplinas
propedêuticas deveriam fornecer ao aluno o arsenal teórico de que necessita
para operar os instrumentais jurídicos, bem como dar-lhe noções sobre o mundo que
circunda o direito e sobre o qual exercerá sua função social. Todavia, o
caráter não dogmático dessa etapa de ensino – que deveria contribuir à formação
do futuro jurista – acaba por propiciar uma “formação verniz”, que, nos dizeres
de Faria, é “brilhante mas superficial” (FARIA, 1987, p. 56). As investigações
de enfoque zetético que deveriam aí ocorrer se perdem em abstrações descoladas
da realidade social, sem nenhum caráter reflexivo em relação ao direito
positivo vigente. Sua superficialidade, portanto, decorre da falta de
enfretamento dos problemas essenciais que surgem no tecido social e que esperam
resposta do ordenamento jurídico.
Em oposição ao fetichismo teórico acima descrito, está
a etapa seguinte no ensino de uma escola de direito: a dogmático-informativa. É
nessa fase – que ocupa a maior parte da grade curricular – que os alunos passam
a ter contato com materiais legislativos e com posições doutrinárias que a eles
se referem. Aqui o fetichismo ganha ainda maior dimensão. Decorrente de uma
vulgata positivista que importou seletivamente Kelsen, a visão dominante é
autista em relação ao que está além das redações normativas do sistema jurídico
vigente. Limitados – na melhor das hipóteses – a um estudo sintático-semântico
das normas jurídicas, os alunos tem sua criatividade reiteradamente podada,
visto que se restringem a um “enfoque a
posteriori, que toma o direito como um dado” (FERRAZ JR., 2015, p. 56).
Nessa fase os alunos se deparam com uma tentativa
absurda de conhecer (sic) holisticamente as regras que compõe o ordenamento
jurídico do país num dado momento. Além de vã, dada a hipercomplexidade das
relações sociais no mundo moderno globalizado e a efemeridade das normas
jurídicas que as regulam, essa tentativa se mostra conservadora, ao se revelar
acrítica, pouco reflexiva e anticriativa, isso é, perpetuadora das formas
postas.
Parece claro que a faceta do ensino jurídico que se
pretende criticar é aquela que mantém estanque teoria e prática jurídica,
enfoque zetético e enfoque dogmático, ser e dever ser. Em suma, a metodologia
desprovida de organicidade e que cerceia a criatividade do aluno, ao lhe manter
alheio aos problemas que surgem e incapaz de lidar juridicamente com aqueles
sobre os quais toma conhecimento.
Já se apontou à falta de iniciativa institucional no
sentido de alterar o sistema de ensino jurídico vigente. Disso decorre o
caráter singelo e, prima facie, pouco
pretensioso da sugestão que aqui se apresenta, em vista que deve partir do polo
geralmente passivo na relação de ensino.
Em suma, o que se propõe é que os alunos tomem
iniciativas de criação de grupos de estudo paralelos às grades curriculares
oficiais que possam atribuí-las algum caráter orgânico. Em um primeiro momento,
os grupos deveriam se debruçar sobre aportes teóricos de base, articulando-os
com problemas em voga em seu contexto social. Ao fazê-lo, devem ter mente
carências dos currículos formais de suas respectivas instituições,
organizando-se para supri-las.
Nessa etapa inicial, devem prezar pelo estudo das
meta-linguagens que compõe o universo do conhecimento jurídico, tal como a
História do Direito, Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito, Criminologia,
etc., sem vincularem-se, no entanto, a divisões formais de conteúdo dentre
essas disciplinas. Trata-se na verdade de empreendimento transdisciplinar.
Em um segundo momento, já com arcabouço
teórico-analítico trabalhado, as empresas devem se voltar à articulação das
meta-linguagens acima referidas com as linguagens jurídicas oficiais – as
normas vigentes. Nessa fase, importa o caráter pragmático, voltado à solução de
conflitos que emergem no seio social e não tem atenção adequada pelo currículo
oficial ou solução adequada pelo direito vigente. Da transdisciplinariedade
parte-se aqui para uma interproblematicidade. Começam a surgir os loci de atuação do jurista criativo
proposto por Daniel Vargas (2014).
Eventualmente, um terceiro estágio de modelo dos
grupos de estudos aqui propostos buscaria o mais alto nível reflexivo, aquele
que colocaria em análise o próprio modus
operandi dos grupos de estudo e sua eficácia aos fins que se propõe.
Trata-se de uma auto-reflexão, acompanhada do estudo basilar dos problemas de metodologia
do ensino jurídico em si.
A criação de espaços não institucionais para estudos
que possam ajudar a dar significação ao ensino tradicional pode se transformar,
paulatinamente, em uma verdadeira revolução no ensino jurídico. Em todos os
aspectos: i) conferir maior abertura das faculdades a problemas contemporâneos;
ii) propiciar maior organicidade aos currículos oficiais, ao rearticular seus
conteúdos em torno da unidade do fenômeno jurídico; iii) favorecer uma postura
mais pragmática do estudo do direito, ao conciliar linguagem e meta-linguagem
jurídica em prol da solução de um dado problema; e, por fim, iv) questionar a
posição passiva do aluno em seu processo de formação, ao passo que os próprios
membros dos grupos escolhem ativamente os temas a serem abordados, livros a
serem estudados e questões a serem debatidas, da mesma maneira em que os
encontros se dão através do método participativo, em oposição ao tradicional
expositivo.
Dessa forma, embora singela seja a sugestão, vem
carregada de esperança. É na verdade uma pequena semente a ser plantada. Que
alguns poucos alunos cultivem essa árvore em suas instituições, organizando
grupos nesses moldes, é um começo. A qualidade de seus frutos cabe ao tempo
revelar.
* Graduando em Direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina. E-mail para contato: marcotoresan_2@hotmail.com. Endereço
eletrônico para acesso ao currículo na plataforma Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4496657390347232.
[1] O
presente paper foi originalmente
escrito como conclusão ao I Curso de Inverno da Escola de Direito da Fundação
Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). Responde-se aqui às provocações levantadas na
mesa de debates “Inovações na Educação Jurídica”, composta pelos Profs. Carlos
Ragazzo e Diego Werneck Arguelhes, assim como aos levantamentos feitos pelo
Prof. Daniel Vargas na aula “Sociedade Criativa”.
[2] Cf., por
exemplo, FARIA, José Eduardo. A reforma
do ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1987. Quase
três décadas se passaram e a obra é mais atual que nunca.
[3] Cf.
BISSOLI FILHO, Francisco. O objeto da
ciência do direito penal – descrição – crítica – reconfiguração. Florianópolis:
Empório do Direito, p. 178-179, 2015.