quarta-feira, 29 de julho de 2015

Um DirFoquiano em Washington D.C.: relatos do XXVII World Congress on the Philosophy of  Law and Social Philosophy

João Amadeus 

Este Congresso é organizado, basicamente, em dois horários: manhã e tarde. Pela manhã, há  as plenárias, com palestras dos professores para todos os presentes, ao mesmo tempo em que  ocorrem os Working Groups, nas salas da Georgetown University. Pela tarde, ocorrem os  Special Workshops, como este em que estou nesse exato momento (em que escrevo a vocês): “Aristotle and the Philosophy of Law: Law, Reason and Emotion”.

1) Lawful emotions

Na segunda de manhã, pude ver as palestras plenárias. Primeiro, Robin West (Georgetown  University Law Center) discorreu sobre os equívocos torno do consentimento jurídico e ética nas relações humanas. Um mundo em que o consentimento jurídico atua com plena normatividade e eficácia é necessariamente um mundo melhor? 

2) The constitutional domestication of emotions

Depois, András Sajó (Juiz na Corte Europeia de Direitos Humanos) palestrou sobre como   sentimentos morais e de outros tipos (emoções) contribuem para a formação de instituições constitucionais. Como se dá a passagem de coisas relativas ao sistema nervoso (emoções) até o regulamento político de uma nação? Esse processo é racional? Inteiramente racional?

3) The validity of law

Pela tarde da segunda, entrei num Special Workshop sobre verdade e objetividade no direito e  na moral. Bem, vi só um pouco da palestra do Prof. Chih-Ping Chang, sobre objetividade nas ciências. Depois de um bombardeio de fórmulas lógicas, saí da sala antes de virar um analítico-que-não-nasce-nada-onde-pisa.

Entrei em outro Special Workshop. Sobre validade no direito, organizado por Stephan Kirste (Áustria/Alemanha) e Pauline Westerman (Holanda). Nele também estava presente Dietmar von der Pfordten (Alemanha).

Pauline Westerman falou sobre a construção das noções de legalidade numa comunidade a partir da filosofia de J. Seale. Pouco depois disso, pedi espaço de fala e contei a “metáfora da bola do jogo”, do Prof. Torquato Castro Jr., que passou a ser usada por alguns dos outros participantes.

O ponto alto do SW foi a palestra de Dietmar von der Pfordten, pela defesa da preservação do conceito de validade. Para ele, normalmente se usa “validade” para se falar em outros tipos de conceitos, como obrigação, permissão,etc.

Como houve discordância geral sobre o defendido por v. d. Pfordten, ele e Westerman travaram um debate interessante. Por exemplo, se “validade” não pode ser usada como critério para juridicidade de um contrato, teríamos que dizer que ele é... “obrigacional”?? 

4) Working Group 9: Rhetoric...

Hoje, terça, não vi nenhuma das palestras plenárias, por causa da minha apresentação no  grupo de trabalho presidido pelo Prof. João Maurício Adeodato. 

https://drive.google.com/file/d/0B7v1_whu0-coeHhhNWZ3NUxxLW8/view?pli=1

Uma observação que faço é a força impressionante que o nome dele tem fora de Recife e fora  do Brasil. Já ouvi pelos corredores pessoas falando sobre artigos que ele escreveu. Brasileiros  aqui pelo Congresso ficam impressionados quando digo que sou orientando dele.

Ou, talvez, estranhos sejamos nós, da FDR, que não valorizamos devidamente o trabalho de  um grande mestre. Santo de casa não faz milagre.

-

Não dá para relatar tudo o que acontece. Muita informação e pouco dedo para digitar.Deixei algumas perguntas em aberto. É intencional. É meu estado de mente permanente enquanto circulo pelos McDonough e Hotung Buldings.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sobre Teoria Geral do Direito, utilidade e um equívoco bem difundido

por Raphael Tiburtino*



            Desde  o início de minha graduação em direito, sempre nutri certo fascínio por disciplinas, por assim dizer, não estritamente dogmáticas. E fui muito criticado por isso. Várias foram as ocasiões em que colegas de curso, vendo-me debruçado sobre Kelsen ou Vilanova, questionavam por que ainda “perdia tempo” com tais leituras. “Isso é inútil”. “De que vai servir isso?”. “Tá bom de começar a estudar matérias que sirvam à prática”. Enfim, dos vários comentários que fui obrigado a tolerar, o denominador comum parece ter sido sempre este: a utilidade de tais matérias – ou a suposta falta dela.

Antes que pensem que este é um texto sobre minha formação acadêmica, quero logo deixar claro que a posição de meus colegas não é isolada. Muito pelo contrário. No ambiente jurídico brasileiro, prevalece certa indiferença, quando não verdadeiro desprezo em relação às disciplinas não estritamente dogmáticas. Na Faculdade de Direito do Recife, em que pese sua tradição histórica, esse preconceito se repete. (Se querem senti-lo na pele, basta andar pelos corredores da Casa de Tobias com um livro de Bobbio ou Hart). Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Hermenêutica Jurídica, Sociologia Jurídica, Lógica Jurídica, História do Direito, enfim, toda e qualquer disciplina que não colha seus conceitos diretamente do direito positivo (ou, para os mais intransigentes, da “lei”) são postas indistintamente pelo alunado (e, ainda mais grave, por parte considerável dos docentes) em uma mesma “caixa”. “Caixa” que, sem muita reflexão ou rigor analítico, rotulam de “zetética”, logo seguida da pecha de inútil. Em outras palavras, o comum é pensar essas disciplinas como pouco ou nada relevantes para a solução de conflitos jurídicos concretos (uma lide judicial ou a confecção de um contrato, por exemplo), de modo que sua importância, se é que existe, estaria reservada ao universo exclusivamente acadêmico, sem qualquer alcance sobre a prática forense.

Não pretendo argumentar em favor da influência que disciplinas zetéticas teriam na formação pessoal do jurista. Tampouco atacar a (já tão desgastada) separação entre teoria e prática. Tais questões devem, é evidente, ser enfrentadas, porém esta não é a forma nem o lugar adequado. Aqui, para ficar com o lugar-comum, tenho objetivo mais “prático”, qual seja chamar a atenção para uma generalização indevida, um equívoco bem difundido em nossa cultura jurídica. Em suma, quero dizer que, se a roupagem da “inutilidade” veste disciplinas como Filosofia do Direito, certamente seu molde não se adequa às medidas de uma Teoria Geral do Direito.

            Se há algo neste texto que valha a pena, é isto: Teoria Geral do Direito não é Filosofia do Direito. Não nego que haja certa aproximação e até pontos de interseção entre as duas disciplinas, mas isso não implica identidade. A Filosofia do Direito se ocupa de problemas como a existência de limites éticos ao conteúdo de regras jurídicas (por exemplo, a injustiça do direito nazista retira seu quê de juridicidade?) ou a possibilidade de o direito regular condutas futuras através de enunciados gerais prévios (a lei limita a atuação do juiz ou ele age absolutamente livre de quaisquer amarras?). Ainda que seja possível seu redirecionamento à prática forense, parece claro que o enfrentamento de tais questões não visa à solução direta de conflitos jurídicos concretos. Até aqui, nada de relevante tenho a contestar.

            Ocorre que o mesmo não pode ser dito da Teoria Geral do Direito. Esta tem caráter eminentemente operacional. Nas palavras de Kelsen , “fornece os conceitos fundamentais por meio dos quais o Direito positivo de uma comunidade jurídica definida por ser descrito” (Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XVII). Norma jurídica, relação jurídica, incidência, sujeito de direito, validade, eficácia, etc., todos estes são conceitos fundamentais, justamente, porque basilares, alicerces, premissas do discurso jurídico, não tendo seu alcance limitado a um ramo específico – a rigor, sequer a um ordenamento específico. Do tributarista ao civilista, meu ponto é que o manuseio consciente e eficaz de seu objeto depende de um sólido conhecimento de Teoria Geral do Direito.

            Há uma série de controvérsias jurídicas reais cuja abordagem adequada depende de conceitos de Teoria Geral do Direito. Por exemplo, um problema jurídico hoje não pacificado por nossos tribunais diz respeito à possibilidade de Estados glosarem créditos de ICMS que tenham sido apurados por contribuintes com lastro em benefícios concedidos por outros Estados sem aprovação do Confaz. Por mais que a questão possa ser abordada por ângulos diversos, quero me ater à discussão em torno da ideia de presunção de validade das normas jurídicas. Segundo Kelsen, uma norma jurídica, até que seja declarada inválida por um órgão que tenha competência para tanto, presume-se válida, devendo ser observada por seus destinatários (Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 300-306). Apoiados em tal premissa, argumentam certos tributaristas que, até que o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade da lei estadual concessiva do benefício, o crédito apurado pelo contribuinte permanece perfeitamente hígido, não podendo outros Estados questioná-lo, ainda que isso implique considerável perda de arrecadação. Trata-se, como se percebe, de um problema inequivocamente jurídico, de extrema relevância prática, e que demanda profundo domínio de Teoria Geral do Direito.

            Não obstante essas claras diferenças, as matérias não estritamente dogmáticas continuam sendo jogadas no mesmo “saco”. Teoria Geral do Direito é confundida com Filosofia do Direito, herdando todos os adjetivos que a esta, justa ou injustamente, são atribuídos. Daí que, no Brasil, autores como Paulo de Barros Carvalho, independente de outras críticas ou méritos, são dignos de nota somente por atentarem para a importância da Teoria Geral do Direito no trato de problemas concretos, introduzindo seus conceitos no âmbito de disciplinas dogmáticas. E os frutos de tal empreitada têm sido inúmeros. É uma pena que, enquanto não deixarmos de lado nosso preconceito, jamais teremos condições de colhê-los.


* Dedico este texto ao amigo Júlio César Almeida, por ter sido o primeiro a abrir meus olhos para a importância da Teoria Geral do Direito.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Um sincero obrigado ao movimento estudantil




por Ednaldo Silva







Quando se vai ficando velho, é comum lembrar de fatos passados pesando a sua importância na própria formação — ao menos com meus avós foi assim: "ah, meu neto, eu aprendi muito com o velho. Certa vez..." é uma das que mais escutei de minha avó paterna. No fim das contas, todo velho protagonizou uma epopéia — ou ao menos gostaria de ter vivido uma.

E, bem, cronologicamente não sou nada velho, tenho 20 anos. Eu sei, é verdade, estou mais para aqueles jovens imberbes que invejam a imponente barba dos avós enquanto esperam ansiosamente pelo dia em que inaugurarão a gilete. Porém, em termos de graduação, sou um velho. Estou no 7ª período de um curso de 10, mais pra lá do que pra cá, e aceitei o diagnóstico que me foi ofertado por um amigo: vivo a crise da segunda metade do curso — seja lá o que isso queira dizer. Sendo assim, como velho que sou, tenho me permitido me alongar demais no desnecessário e procurar na minha passagem pela graduação os tais acontecimentos dignos de nota.

Até o momento contei 5. Um deles foi a minha primeira eleição do diretório acadêmico, na qual tive sorte: essa eleição foi marcada pelo surgimento de um novo movimento estudantil na casa, que passou a ter 3. Se o debate ideológico já era considerável antes, passou a ser maior. Aquela não era bem a efervescência científica e cultural que eu esperava quando ingressei na universidade, mas, diante do quase um ano de completo marasmo, já era algo. Os corredores bastante ocupados e os alunos dispostos ao embate franco — às vezes dispostos até demais — foi o suficiente para me levar, em um caminho sem volta, a preferir as conversas dos corredores à maioria das aulas, algo do que não me arrependo.

Mas enfim. Se na época o movimento estudantil da minha faculdade já me encantou pelo simples engajamento, um certo tempo depois percebi que ele tem uma importância um pouco maior. Tais grupos são hoje os principais responsáveis por exercer, mesmo que não da forma mais adequada, a discussão política na academia jurídica, a qual é essencial.

Um dos meus juristas preferidos, Luis Alberto Warat, falava da necessidade de carnavalizar o direito em prol de um exercício mais democrático de tal poder. Warat demonstra acreditar que, de fato, as possibilidades de exercício do poder, a partir dos instrumentos já existentes, são limitadas. No entanto, seria possível, a partir da boa compreensão do funcionamento destes vários instrumentos de poder, utilizá-los de "formas melhores" — termo tão preciso quanto um texto de blog permite ser. Envolta nesta idéia está a carnavalização do direito: torná-lo acessível aos nossos desejos, de forma que possamos dar luz aos nossos anseios. Assim, tornar o direito um pouco mais propenso à sugestões sobre seu conteúdo e seu funcionamento a partir de um debate mais amplo destas questões seria essencial para um exercício democrático do poder jurídico.

Este reconhecimento de que o exercício do direito tem um importante papel político, que não pode ser ignorado, pode parecer algo um tanto quanto óbvio, mas não o é, ao menos se olharmos para o atual ensino do direito. É dificílimo encontrar professores que, em suas aulas, contextualizem o uso da ferramenta jurídica, apontando, por exemplo, que tipo de efeitos a produção de uma norma jurídica — no sentido mais lato possível do termo, compreendendo desde os códigos até as decisões judiciais — têm tido sobre a sociedade, ou refletindo sobre as possibilidades do uso de institutos jurídicos para integrar setores da sociedade hoje marginalizados.

E, se os professores não fazem esse tipo de análise, os movimentos estudantis são hoje, na maioria das instituições federais, os responsáveis por oferecer aos estudantes de direito a possibilidade de ter um mínimo de contato com debates políticos durante a graduação. Realmente, isto não é feito da "forma acadêmica" — e nem cabe exigir que o seja —, mas, em meio à completa ausência, é um avanço. Não há, na maior parte das vezes, o exercício da interseccionalidade entre política e direito, mas há, ao menos, a apresentação do cenário político, e conhecê-lo é o primeiro passo de um caminho longo que precisa ser percorrido: reconhecer que a política criminal falhou no combate as drogas, por exemplo, é o primeiro passo para desenvolver formas jurídicas voltadas para a solução do problema, tenham elas pretensões abolicionistas ou meramente reformadoras.

E, veja bem, isto não se trata de mero comprometimento ideológico. É questão de responsabilidade. Que o jurista tenha acesso às mais diversas vertentes e possa escolher, o mais livremente possível, qual prefere seguir; contudo, ele não deve simplesmente ignorar as consequências que se tem ao escolher entre um sistema tributário que foque no consumo ou na renda, por exemplo. Ignorar o viés político do direito não o faz sumir.

Esta é uma análise sistêmica extremamente necessária e, se não pode ser desempenhada exclusivamente por juristas, visto que requer, também, certos dados muito melhor manejados por outros saberes, como a sociologia, precisa ser, também, desempenhada por juristas. No momento em que se redige um código penal, por exemplo, não se pode ignorar, entre a redação de artigos e incisos, os efeitos que a tipificação terá; se será responsável por promover mais segregação, se é motivada por pura estigmatização ou existe boa razão que a justifique... Não agir de tal forma é ser completamente irresponsável. É contribuir para a consolidação de um modelo de sociedade sem sequer refletir sobre a contribuição feita.

Tão irresponsável quanto, por exemplo, ser um juiz que, ao aplicar a legislação civil, ignora os efeitos da sua interpretação sobre setores minoritários da sociedade. De fato, não há apenas uma resposta certa no direito, mas apenas respostas válidas ou inválidas: ou o jurista manuseou bem o arcabouço conceitual, ou não. Então, que o jurista seja "livre" dentro da sua própria capacidade de fundamentar juridicamente sua linha argumentativa, mas que aja com plena consciência das escolhas políticas que faz. Ou seja, conhecer a política jurídica é algo necessário tanto para acadêmicos, quanto para promotores, procuradores, juízes...

Por isso, aproveito e agradeço aos movimentos estudantis da minha faculdade por terem facilitado o contato com este tipo de discussão, que, a depender dos meus professores, só teria tido pouquíssimas vezes, contáveis nos dedos das mãos — de uma das mãos, sendo mais preciso. A todos, sem exceção. Embora tenha minhas discordâncias — principalmente na forma de proceder, às vezes incisiva demais, a meu ver —, mais com uns do que com outros, é preciso ser justo e reconhecer que nisso todos tiveram sua parcela de importância.

Inclusive, este é um tipo de agradecimento que pode parecer um tanto quanto dispensável, mas não o é. Em um momento em que muitos juristas esquecem que seu trabalho envolve pessoas, quem nos lembra delas precisa ser elogiado.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

“Manda quem pode, obedece quem tem juízo”

breves comentários sobre a relação entre direito e poder na ‘sociedade internacional’


~Parte 2~

Por Vitor Galvão Fraga

A ~parte 1~ desses “breves comentários”, publicada semana passada aqui no blog do Direito em Foco, abriu a discussão sobre a persuasão do direito internacional e seu papel, reduzido ou não, diante do poder político real na sociedade internacional. Após um breve panorama das principais posições teóricas sobre o tema, terminei o texto passado com as seguintes perguntas que me propus a responder aqui: “1) qual é, afinal, a teoria que melhor explica a obediência ao direito internacional? 2) e qual é a utilidade desse tipo de reflexão?”

Para a primeira pergunta, se você é familiarizado com textos teóricos, não vai se espantar em saber que não dá para indicar cabalmente apenas UMA teoria correta, cada pensamento aqui listado trouxe avanços às relações internacionais e também enfrentou críticas e obstáculos, umas conseguem explicar melhor certos fenômenos e outras outros.

Eu pontuaria apenas que é impossível negligenciar hoje a importância tanto das normas de direito internacional, como das relações de poder entre os Estados, as duas condicionantes atuam juntas na determinação do comportamento dos membros da sociedade internacional e por isso não dá para fechar os olhos nem para os avanços do modelo racional nem do modelo normativo.

Usando alguns conceitos luhmannianos, tanto expectativas normativas (comuns ao direito) quanto expectativas cognitivas (a riqueza de um país, por exemplo), atuam juntas na redução de complexidade, ou seja, no estreitamento daquilo que podemos esperar da atuação dos Estados. O direito, enquanto uma forma de comunicação generalizada e diferenciada certamente impõe condutas aos sujeitos de direito e limitam o seu atuar, tanto que existem os chamados “sistemas jurídicos neo-espontâneos” que prescindem até da atuação (política) estatal. O direito impõe obrigações e é obedecido independentemente de uma atuação política, uma interação jurídico-política - num modelo constitucional – é importante, porém não essencial para que o direito atue reduzindo complexidade, obrigando.

O descumprimento de obrigações internacionais em detrimento de interesses políticos e do uso do poder justifica-se naquilo que Marcelo Neves chama de “tendência totalizadora” do sistema político, mas isso não torna o direito “meras palavras vazias”, como na extrema ideia realista, mas sim tanto as normas como os interesses atuam concomitantemente na determinação da ação dos Estados, a existência de um não exclui o outro, ambos devem ser levados em conta. É certo que a estrutura anárquica da sociedade acentua a “totalização” dos interesses políticos, mas, como explica a ideia de internalização normativa já mencionada, as normas mesmas ajudam a compor a noção de interesse nacional e não podem ser negligenciadas.

Pelo que foi explicado acima, entendo que a melhor maneira de encarar o assunto é de uma maneira eclética, Estados são sim unidades racionais que agem na busca de seus interesses, mas ao mesmo tempo as noções de identidade importam na determinação desses interesses e aí as normas jurídicas cumprem um papel determinante na relação entre os Estados.

Em suma, acredito que não dá para negligenciar aquilo que os teóricos do modelo racional dizem sobre as relações de poder e os cálculos de ganho, assim como não se pode deixar de lado as conclusões normativas sobre o papel das normas e a construção das identidades Estatais. E isso nos leva à segunda pergunta: “qual é a utilidade disso? ”. Adotar uma posição eclética é reconhecer as conclusões e importantes contribuições que as duas perspectivas trouxeram para o Direito internacional, como resposta a essa pergunta, menciono abaixo algumas dessas contribuições.

Começando com o modelo racionalista, é a partir dele que se justifica o uso da Teoria dos Jogos (que tem aplicação nesse âmbito já com Morgenthau na década de 40) que já foi responsável por importantes contribuições para o direito internacional. Talvez a mais evidente dessas aplicações seja em relação ao direito econômico internacional e às séries de negociações em torno do GATT que muitas vezes não avançavam por mais que o avanço fosse benéfico para todos, o que é usualmente ilustrado na figura do “dilema do prisioneiro”.

Ainda no modelo racionalista, menciono também a já clássica pesquisa de Eric Posner e John Yoo sobre a independência dos tribunais internacionais publicada pela California Law Review em 2005, que demonstrou numericamente a tendência de tribunais independentes serem desrespeitados por países poderosos, o que leva os autores a defender que os tribunais internacionais são mais efetivos quando dependentes dos Estados, pois aí garante-se um maior estreitamento do direito e do interesse estatal, facilitando a obediência às decisões das cortes.

Também são raciocínios dentro do modelo racional que levam à elaboração de sistemas eficazes de sanção, como o que ocorre com o Tribunal Irã-Estados Unidos, que, sabendo da propensão que ambos os Estados teriam a não cumprir decisões contrárias a eles, criou desde sua fundação um fundo prévio em que os Estados depositaram uma quantia suficiente de dinheiro antes mesmo do resultado das decisões, inutilizando a possibilidade de um deles negar uma compensação pois tal seria retirada desse fundo pelo próprio tribunal

Das contribuições do modelo normativo posso mencionar as pesquisas importantíssimas da corrente teórica de relações internacionais conhecida como “Foreign Policy Analysis”, que é centrada especialmente na ideia de identidade e sua associação com os agentes do governo de cada país. Uma famosa contribuição dentro dessa corrente foi a explicação dada por Graham Allison para a Crise dos Mísseis Cubanos no livro “Essence of Decision”.

Nesse livro ele cria importantes conceitos como o de “SOP – Standard Operational Procedure”, que explica a maneira não necessariamente “racional” que a burocracia tem para lidar com eventos e responder a práticas conhecidas. Seu trabalho abriu as portas para estudos de vertente mais psicológica que explicam e preveem a ação dos Estados e a forma como eles entendem e reagem, por exemplo, às normas de direito internacional. (Para um histórico detalhado desses estudos, vide: Valerie Hudson, “Foreign Policy Analysis”, Blackwell publishing)

Também as contribuições construtivistas no entendimento e desenvolvimento do regime internacional de direitos humanos são de vital importância atualmente. Apenas para citar um exemplo, Christian Reus-Smit, professor da Universidade de Queensland, Austrália, demonstrou o erro no senso comum teórico da época em justificar o fortalecimento do tão evidenciado regime internacional de direitos humanos numa reação ao surgimento de pequenos e falidos Estados, ex-colônias, que mal conseguiam garantir certos bens políticos e sociais a seus cidadãos.

Reus-Smit demonstrou num artigo escrito em 2001 que, ao contrário do pensamento comum, o mais razoável seria explicar a descolonização no regime de direitos humanos e não o contrário. Entre outras razões mais “sociológicas”, isso é claro quando se observa que certos Estados da primeira onda de descolonização, como Índia e Paquistão, foram importantes atores na construção dos principais diplomas de direitos humanos da época, o que justificava seus objetivos na busca de um direito humano de autodeterminação. A conclusão que se tira desse artigo é que hoje a soberania é diretamente determinada pelo regime de direitos humanos, numa interessante interação entre direito e política.

Em conclusão, explicativas simplistas sobre o cumprimento de obrigações legais, geralmente relacionadas ao uso da força e da ameaça não são suficientes para explicar a complexa interação entre Estados e desses com as normas de direito internacional. Também não é suficiente a bastante comum redução do direito ao poder, desconsiderando os papéis de identidades, normas e cultura.


Como explicado acima, não é preciso tomar time na explicação da sociedade e do direito, assim como na construção de ferramentas e soluções para novos problemas e respostas para novas questões, tanto modelos racionalistas quanto normativos de encarar o cumprimento do direito internacional tem muito a dizer e contribuir. Tomar em conta as conclusões das duas perspectivas, compará-las e sistematiza-las é reconhecer a complexidade do fenômeno internacional, expandindo horizontes para uma melhor compreensão dessa complexidade.