quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A autossuficiência jurídica



Por Ednaldo Silva

Ainda no início do curso, eu e uns amigos combinamos que nos policiaríamos para não nos tornarmos algo como um "jurista por excelência": aquele que durante o dia lê processos e mais processos, e, no happy hour, entre os goles de cerveja, tem como principal diversão glosar sobre suas narrativas preferidas: processos. Doce ilusão. Me lembrei disso há um tempo atrás, quando eu e esses mesmos amigos saímos e alguns comentavam sobre suas experiências com "processos absurdos", onde se destacavam ora o uso indevido do caps lock, ora histórias e expressões um tanto esdrúxulas. Não foi nada que me incomodasse, sequer durou tanto tempo, é verdade. Mas, além do tal combinado, me lembrou do quanto, às vezes, me parece que ver o mundo para além do Direito é uma atividade extremamente difícil pros juristas.

Afinal de contas, os juristas são autossuficientes. Cheguei a essa conclusão depois que, assombrado, vi alguns deles reduzindo a proposta de uma assembleia constituinte exclusiva às lentes jurídicas: "isso é um absurdo jurídico, não pode ocorrer, afinal como pode um poder constituinte limitado?!". Muitos sequer discutiam se tal formato era útil ou cabível, politicamente falando, de forma que levei um susto ao ver sujeitos querendo submeter um fenômeno político, em toda sua complexidade,  aos conceitos jurídicos e todas as suas limitações, no mínimo, epistemológicas.

Se talvez tivessem exercitado um pouco mais a interdisciplinaridade, percebessem como poderiam ser identificados como maus escritores: o bom escritor sabe que, embora certas metáforas nunca percam a beleza por mais antigas que sejam — como o "amor é fogo que arde sem se ver", ou, no caso do nosso direito, a tal "clareza da lei" —, outras metáforas — como o "asa da xícara", ou, sendo um jurista, a tal constituinte que, de tão ilimitada, sequer pode se limitar —, com o passar do tempo não atendem mais à "ânsia criativa" dos leitores e precisam ser deixadas de lado pelo sujeito que escreve, que deverá buscar outras alternativas.

Mas o aluno de Direito, hoje, não compreende a interdisciplinaridade, embora muitas vezes se esforce. Debatemos a legalidade das cotas raciais em prol da interdisciplinaridade; debatemos a constitucionalidade do casamento homoafetivo em prol da interdisplinaridade; debatemos a legislação tributária e seus entraves ao empreendedorismo em prol da interdisciplinaridade. Mas, na verdade, em nenhum desses momentos fomos interdisciplinares. Em nenhum desses momentos conhecemos outro vocabulário, outros conceitos, ou outras visões de mundo. Na maioria das vezes sequer conhecemos outra pessoas que não um jurista, visto que, normalmente, são eles que, vestidos com suas elegantes roupas formais, ocupam as mesas dos eventos que, preocupados, trazem a interdisciplinaridade até nossas faculdades.

Submeter aos conceitos jurídicos um tema que não é de "natureza jurídica" não é ser interdisciplinar. E isso é um agravante na medida em que nós precisamos ser interdisciplinares. Embora o conhecimento jurídico não seja capaz de expressar todo o mundo, nós, juristas, resolvemos regrar todo o mundo. E, dada tal responsabilidade, precisamos conhecer bem mais do que "apenas" direito, mas também história, literatura, política, economia... Porém, não conhecemos e, aparentemente, demoraremos a partir em busca destes conhecimentos.

Em meio a tudo isso, me vem a cabeça uma anedota que Tom Jobim contava: ele dizia que assim que a fama começou a surgir, às vezes não era suficiente se apresentar como Tom Jobim, então ele complementava, "Tom do Vinicius"; e isso sem vergonha alguma por se "escorar" no amigo mais conhecido. Esperto, Tom sabia que ninguém pode ser alguém sozinho. 

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