quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Direito e ordem social: conciliando autonomia e instrumentalidade

Por Jorge Ferraz

 

A distinção entre direito processual e direito substantivo é-nos apresentada já no primeiro ano do curso de direito. Aprendemos, e desde o início, que uma coisa é o direito substantivo, o direito "concreto", que se pode pleitear em juízo; e outra coisa é o direito processual, o direito instrumental, o direito que, em suma, é o meio para a efetivação daquele direito material. As noções de "meio" e "fim", que transcendem o universo jurídico, são razoavelmente bem conhecidas pelo comum dos homens; é de senso comum a diferença entre aquilo que se quer em si mesmo (fim) e aquilo que se quer apenas secundariamente, como um meio para a obtenção de um outro algo. Entende-se, assim, fácil, e até intuitivamente, o "papel" de cada um dos "tipos" de direito.

A história da evolução do direito processual é também familiar ao primeiranista. Aprendemos, desde o início, que houve uma época em que o processo era inseparável do direito material, ao ponto de se confundir com ele; depois ele passou por uma fase de emancipação, na qual adquiriu autonomia em relação ao direito substantivo. Determinados exageros nesta fase fizeram com que ao direito processual fossem concedidos ares de direito-fim, como se a sua autonomia científica (verdadeira, justa e necessária) implicasse em radical independência do direito material que ele serve: foram os tempos tenebrosos em que a não-apreciação do mérito por vício de forma foi erigida a evento de extinção processual em massa. Finalmente, pacificou-se a compreensão de que o processo, conquanto seja um ramo autônomo do direito, possui uma natureza eminentemente instrumental: não deve existir como um fim em si mesmo, mas deve servir à efetivação do direito substantivo do qual ele é meio.

Um terceiro conhecimento que se obtém logo ao entrar na faculdade é a história da evolução do direito como um todo, através de um processo - de séculos - de progressiva diferenciação. O direito, que nas sociedades primitivas era indistinto de outras ordens normativas sociais (v.g. a moral, os usos sociais, a religião), adquiriu paulatina e progressiva autonomia - a ponto de enfim emergir como um sistema auto-constituído, independente dos outros (sub)sistemas sociais dos quais ele se origina. Após lutas sangrentas, o direito conquistava o direito de dizer o que é direito. Esta é a visão mais comum do fenômeno jurídico - ao menos nos moldes introdutórios em que é pintada na faculdade.

Conjugando tudo isso, é impossível não enxergar o paralelo entre a história do direito do processo - primeiro indistinto do direito substantivo, depois autônomo, depois indiferente ao direito material e, por fim, como um instrumento para este - e a história do próprio direito. A diferença, parece, é que a história do direito processual avançou mais rápido do que a história do direito como um todo, e o caráter instrumental do processo em relação ao direito foi reconhecido mais rapidamente (pela academia) do que o caráter instrumental do próprio direito em relação à ordem social.

Talvez a explicação mais plausível para a atual crise do sistema jurídico (onde questões como ativismo judicial, discricionariedade dos juízes, limites hermenêuticos do judiciário e congêneres estão na ordem do dia) seja esta: academicamente, o direito é tratado como um sistema autônomo e independente, mas na prática é manejado como se fosse um meio para a efetivação de controle social. Afinal de contas, e para ficar só em um exemplo, a aceitação judicial do costume contra legem (de fazer Kelsen revirar-se no túmulo), que outra coisa não é que a transposição radical, para o direito como um todo, do princípio da instrumentalidade das formas?

Os alunos dos nossos cursos jurídicos não se interessam pelo estudo científico do direito por isso: a relação que eles têm com ele é meramente instrumental, como se o direito fosse o meio à sua disposição para mudarem o mundo. Nada mais cativante para a juventude. E isso, que se inicia nas faculdades e não é convenientemente podado, termina por degenerar em um sistema jurídico onde há uma clivagem entre teoria e prática, onde a maneira como o sistema se apresenta não é a mesma como ele opera. Nada mais terrível para a ciência. Esta precisa reconhecer a realidade e parar de torcer os fatos para que se encaixem na teoria.

Entenda-se bem, não é que se deva submeter o direito a outras ordens normativas. O ponto é que o direito já é tratado como meio para a efetivação social da visão de mundo daqueles que têm condições de influenciar o direito - e isto precisa ser reconhecido, incorporado ao universo jurídico e cientificamente sistematizado. Enquanto tal não acontece, corre-se o risco de que o direito seja por um lado (o acadêmico) incompletamente compreendido e, por outro (o político - no sentido lato), acriticamente manipulado. É o pior dos mundos.

Isto significa dizer que a solução dos grandes problemas jurídicos da contemporaneidade demanda olhar para fora do universo jurídico. Dizê-lo pode parecer uma banalidade; afinal de contas, sabe-se que o conhecimento aprofundado de um especialista só realiza o seu pleno potencial quando inserido e integrado na visão de mundo mais ampla de um generalista. Mas a isso, que se compreende e se aceita relativamente bem quando se está falando de áreas dentro de um mesmo ramo do saber (como, por exemplo, a hematologia e a clínica geral dentro da medicina, ou a física elétrica e a arquitetura de hardware dentro da engenharia da computação), costuma-se oferecer natural resistência quando se lhe deseja dar uma aplicação interdisciplinar. Parece, no entanto, que ela é - cada vez mais - necessária.

Porque o direito é aplicado por seres humanos vivendo em sociedade, e no espírito dos homens ele é e continua sendo ars boni et aequi: e para "o bom e o justo" o próprio direito tem um caráter instrumental que não pode ser completamente elidido - assim como não se pode prescindir, no processo, da instrumentalidade das formas. Isto implica em dizer que a crise do direito exige, dos juristas, um olhar para fora do seu universo próprio; exige que nos debrucemos sobre sociologia, antropologia, ética, moral e - talvez principalmente - filosofia. Não se trata de conhecimentos "alheios" ao mundo jurídico, acidentais ou dispensáveis. Muito pelo contrário, são conhecimentos sem os quais o direito não tem a sua razão de ser.

domingo, 27 de setembro de 2015

O Estado e o Indivíduo - 4º encontro (30/09): Público vs. Privado



É com entusiasmo que anunciamos o próximo encontro do atual módulo do eixo 1, "O Estado e o Indivíduo", que ocorrerá essa quarta-feira na Faculdade de Direito do Recife. Dessa vez, discutiremos o tema "Público vs. Privado", com base na segunda parte da grande obra de Jean Jacques Rousseau:

Discurso Sobre a Origem da Desigualdade 

O debate se centrará nas questões referentes às diferenças entre os bens públicos e os bens privados, a partir da própria noção de propriedade e da sua criação segundo a obra de Rousseau.

O texto pode ser acessado no link abaixo e também se encontra na xerox da FDR.

https://www.dropbox.com/s/47w526vlw5shfys/4%20-%20Rousseau.%20Discurso%20sobre%20a%20origem%20da%20desigualdade..pdf?dl=0

É nessa quarta-feira, dia 30 de setembro, às 17h na sala 04 da FDR.

Esperamos você!

domingo, 20 de setembro de 2015

O Estado e o Indivíduo - 3• Encontro: Os Limites da Liberdade



Dando sequência ao módulo 7 do eixo 1, o Direito em Foco convida a todas e todos para a sua próxima reunião que discutirá "Os Limites da Liberdade". Como texto-base para servir de mote ao nosso encontro usaremos o capítulo 1 do

Ensaio sobre a Liberdade

do filósofo e economista inglês John Stuart Mill. O tema é uma continuação do encontro passado, quando discutimos o papel do Estado enquanto interventor ou não; dessa vez, a pergunta não é se o Estado deve ou não agir, mas, havendo ele de agir, sob que condições o indivíduo não pode mais legitimamente alegar violação à sua liberdade. Até onde podemos alegar nossa liberdade para agirmos como quisermos? sob que condições o Estado pode nos limitar? em suma, quais os limites da liberdade?

Já é essa quarta feira (23/09) às 17 horas na sala 4 da Faculdade de Direito do Recife. O texto já está na Xerox, mas também pode ser baixado pelo link a seguir:

https://www.dropbox.com/s/3oc2wum9talmbfi/3%20-%20John%20Stuart%20Mill.%20Ensaio%20sobre%20a%20Liberdade..pdf?dl=0

Esperamos você lá!

domingo, 6 de setembro de 2015

O Estado e o Indivíduo - 2º encontro: O Papel do Estado (09/09)


O Direito em Foco convida a todas e todos para participar de sua próxima reunião sobre o "Estado e o Indivíduo". Dessa vez, o tema do encontro será "o papel do Estado": discutiremos questões como as obrigações que um Estado deve ter, as condições inerentes a essas obrigações e a velha disputa entre o Estado máximo e o Estado mínimo, ou será que nessa matéria também não existem 50 tons de cinza? 

Como mote de nossas discussões, usaremos de texto-base os capítulos 13 e 14 da famosa coleção de escritos de Ayn Rand intitulada

A Virtude do Egoísmo

Será nessa quarta-feira (09/09) às 17h, como de costume, na sala 04 da FDR. O texto encontra-se no link abaixo e também na Xerox.


Esperamos vocês!

Direito, Lógica e uma oportunidade para o futuro

Victor Lacerda

          Nesta última semana, dos dias 31 e de agosto a 4 de setembro, ocorreu o evento NAT@Logic na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O evento, de magnitude internacional, reuniu lógicos, cientistas da computação, filósofos e matemáticos para discutir e ensinar temas atuais da filosofia e da lógica. Além de mim, também estiveram no NAT@Logic Ítalo Oliveira, membro do Direito em Foco, e Torquato Castro Jr. (a quem agradeço por todo o suporte prestado), coordenador do grupo.

          Acho que não estou errado quando digo que fomos ao evento sem a pretensão de ver trabalhos que pudessem estar diretamente ou indiretamente relacionados ao direito. E estávamos enganados ao pensar assim. Na relação de trabalhos a serem apresentados, um chamou nossa atenção: “How Kelsenian Jurisprudence and Intuitionistic Logic help to avoid Contrary-to-Duty paradoxes in Legal Ontologies” dos autores Alexandre Rademaker (FGV/EMAp & Pesquisador da IBM Research) e Edward Hermann Haeusler (PUC-Rio). Nos fizemos duas perguntas: “o que diabos Kelsen está fazendo em uma conferência sobre lógica?” e “seriam os autores ligados ao mundo jurídico de alguma maneira?”.

          Mas esse não foi o único trabalho a me causar estranhamento. Christian Strasser (Ruhr-Universität Bochum), iniciando seu tutorial sobre lógicas não-monotônicas, ressaltou os usos desse tipo de sistema formal para os campos da inteligência artificial, processamento de linguagem natural e para o Direito! Já Ofer Arieli (The Academic College of Tel Aviv), palestrante convidado, ao fazer as considerações iniciais sobre seu trabalho “Sequent-based Argumentation” declarou que o campo da argumentação lógica tinha aplicações estreitas com o Direito.  Ao conversar com os dois durante os coffee breaks, pedi algumas recomendações de literatura para o meu trabalho de monografia e ambos demonstraram conhecer autores como Jaap Hage, Henry Prakken e Giovanni Sartor, que estão na linha de frente da pesquisa em Inteligência Artificial e Direito. 

          No último tutorial do evento, dado pelo professor Frank Sautter (Universidade Federal de Santa Maria), que versava sobre Dynamic Propositional Reasoning, falou-se no problema de validade de normas no esquema piramidal Kelseniano como um problema jurídico que poderia ser abordado através da lógica. Em outro tutorial, dessa vez ministrado pelo professor Ivan Varzinczak (UFRJ), foi apresentada a lógica de descrição, uma linguagem formal para representação de conhecimento, e já é utilizada para a criação de KBS (Knowledge Base Systems) no campo da medicina, mas que percebi ser facilmente transportável para a representação de conhecimento legal. E foi justamente esse o sistema utilizado no trabalho sobre Kelsen. Haeusler apresentou seu artigo e mostrou como fazer uso de uma lógica de descrição intuicionista para representar a legislação brasileira sobre Direito Internacional Privado e resolver um conflito simples sobre a validade de um contrato de compra e venda realizado por um estrangeiro que, em virtude de sua idade, era considerado incapaz pela legislação brasileira, mas que ainda assim deveria ter sua capacidade reconhecida pois assim determinava a legislação de seu país de origem. Em uma conversa rápida com Haeusler, vimos que nem ele nem seu co-autor eram da área de Direito, mas que se interessavam pelo assunto e que inclusive já haviam tentado se aproximar do Legislativo para fazer aplicações da lógica na elaboração de leis.

          Há algo de muito esquisito em toda essa história: há muitos lógicos que vislumbram aplicações de seus sistemas para o mundo jurídico, mas (ao menos na FDR), há poucos juristas interessados no que os lógicos tem a dizer. Internacionalmente, a ponte já foi estabelecida há anos. Por exemplo, as conferências JURIX (28th International Conference on Legal Knowledge and Information Systems) e JURISIN (International Workshop on Juris-informatics) promovem pesquisa interdisciplinar entre lógica, informática, filosofia e direito. Instituições como a Universidade de Bologna, Universidade de Vienna e Universidade de Groningen possuem departamentos e grupos de pesquisa voltados ao campo de Inteligência Artificial e Direito. 

          Disso tudo, posso apenas extrair uma coisa: o estudo sério da lógica e suas aplicações para o Direito poderia constituir uma moderna linha de pesquisa para o Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade. E não precisamos fazer isso sozinhos. Como bem apontado pelo meu colega Ítalo Oliveira, a UFPE já conta com know-how técnico no seu Centro de Informática e uma parceria poderia ser negociada entre o CCJ e o CIn. Obviamente, para que um projeto ambicioso e importante como este saia do papel, é preciso muita vontade institucional. Destaco, por fim, a importância simbólica da cadeira eletiva do novo perfil “Lógica e Direito”. A cadeira, que havia sido aprovada como obrigatória, foi jogada para o campo das eletivas e conta apenas com 30h de carga horária. No entanto, vejo que pode ser usada como espaço para atrair alunos interessados em estudar um assunto intelectualmente estimulante e que passa longe de temas enfadonhos e batidos.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Eixo 1 - O Estado e o Indivíduo - 1º encontro: O Estado de Natureza (02/09)


No próximo encontro do Direito em Foco daremos início ao módulo 7 do Eixo 1: O Estado e o Indivíuo. Para começar, iremos debater os capítulos 13, 14 e 17 da obra máxima de Thomas Hobbes 

O Leviatã

O tema do encontro será o Estado de Natureza, aqui discutiremos a própria fundação do Estado, porque ele existe e porque precisamos dele.

Já é essa quarta feira (02/09) às 17 horas na sala 4 da Faculdade de Direito do Recife. O texto já está na Xerox, mas também pode ser baixado pelo link a seguir:


Esperamos você lá!