quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Apresentando o Laboratório Direito em Foco



O Laboratório Direito em Foco constitui o terceiro eixo de atividades do Direito em Foco. É uma inovadora proposta de inovação no ensino na Faculdade de Direito do Recife, nascida das discussões ocorridas ao longo do ano, tanto no Eixo 1 quanto no Eixo 2.

O Laboratório – carinhosamente chamado LDF pelos membros do grupo – nasce como consequência da necessidade observada de aproximar as discussões já vivenciadas pelo Direito em Foco da prática jurídica.

O LDF busca um método que se diferencia do que é proposto em sala de aula, visando criar uma nova cultura dentro da Faculdade de Direito do Recife: uma cultura que aproxime os discentes de matérias muitas vezes esquecidas, mas que são imprescindíveis para a formação de juristas, como a retórica clássica e a lógica informal. No LDF, a abordagem de tais temas será feita sempre visando a sua aplicação no mundo do Direito, prezando pela intertextualidade e pela multidisciplinaridade.

A atividade do LDF consistirá em estudos de uma série de casos de áreas diversificadas para que, ao final, os participantes assumam a postura de advogados e simulem um julgamento, aberto ao público. Os participantes serão auxiliados por monitores (alunos de períodos mais avançados), bem como pelos docentes da Faculdade de Direito do Recife, por meio de oficinas e de minicursos de apoio. Nesse interim, um dos objetivos do LDF é aproximar a teoria da prática e fomentar uma postura em que os juristas criem mais – e repitam menos – os argumentos dogmáticos.

Em síntese, com o LDF, o Direito em Foco se propõe a criar na Faculdade de Direito do Recife um ambiente de experimentação, já que a prática jurídica não está necessariamente adstrita ao que é tradicionalmente cobrado e estimulado em nosso paradigma educacional.

O Edital será lançado em breve, então fiquem de olho!

terça-feira, 22 de outubro de 2013

#Ensino Jurídico - Nota do Grupo

NOTA SOBRE INADEQUAÇÃO PEDAGÓGICA
E DESVIO DE FUNÇÃO NOS ESTÁGIOS DE DIREITO

Após uma roda de diálogo sobre a INADEQUAÇÃO PEDAGÓGICA E DESVIO FUNCIONAL NOS ESTÁGIOS JURÍDICOS, o Direito em Foco entendeu que o modelo pedagógico que mais adequado para as atuais necessidades da educação jurídica é o de um ensino dialógico, no qual professor e alunos produzam o conhecimento, superando a concepção do aprendizado como reprodução exaustiva de manuais, cadernos e aulas expositivas. Concepção esta que se encontra enraizada nos cursos e estágios de direito no Brasil. Além, um ensino crítico, no sentido da não ingenuidade e aproveitamento efetivo dos potenciais dogmáticos e zetéticos, da conjugação do saber teórico com o saber prático.

O grupo percebeu, também, a necessidade de observar o referido desvio pedagógico e funcional dos estágios jurídicos de forma ampla e contextualizada, orientando-se através de três questões-problema.

A primeira questão-problema que levantamos é: qual a função do estágio? Acreditamos que o estágio não pode ser reduzido a uma forma de ingressar no mercado de trabalho, tendo como único legado o processo de doutrinação para as regras de comportamento empresarial e da dinâmica do escritório, visando a futura efetivação no emprego. Esta prática é danosa, indo de encontro ao papel do estágio, levantado em nossa roda de diálogos, como um ambiente de aprendizado e experimentação. O estágio é o momento em que o aluno de direito poderá interagir com o mundo jurídico e suas carreiras. Uma experiência que deveria fomentar a autonomia, a iniciativa, a criatividade e a reflexão, ao se lidar com o mundo profissional e os problemas práticos. 

Outra importante questão-problema é: o estágio envolve qual tipo de trabalho? A prática no estágio é comumente reprodutiva, mesmo quando parece produção: pede-se ao estagiário que, a partir de modelos, complete uma peça processual com determinados dados, sem nem mesmo explicar os argumentos utilizados, por exemplo. Não há qualquer preocupação em explicar toda a dinâmica processual, de forma que o contato do estagiário com os atos processuais é acrítico: se mostra o jogo jurídico e as regras que o compõem, mas não se ensina a jogá-lo de fato. No caso dos tribunais, muitas vezes, sequer será ofertado o contato com o labor jurígeno, ou seja, pensar o processo a partir da dinâmica do ordenamento e da justiça social.

Por último, uma última questão-problema: qual a relação dos alunos com estas formas de estágio? O comum é que os alunos aceitem tais problemas já descritos nesta nota. E, entre as mais variadas razões para que tal coisa aconteça, o grupo destacou o perfil do aluno: o estudante passou por todo um sistema escolar de ensino focado na reprodução, de forma que se tornou hábito não enxergar o contato acrítico com as atividades nos empregos jurídicos como um problema, pois o ensino reprodutor foi o único com o qual ele teve contato. Assim como no caso do assédio, a reprodução constrói o hábito e o hábito sustenta a concordância. É que o aluno de direito, em não raras vezes, passa a investir sobre esse modelo de prática jurídica perpetuando uma atividade jurídica de qualidade questionável. 

Com o passar do tempo, se torna clara a deliberada atitude pró-reprodução que começou na escola, se consolida na educação e é taxada por “natural e de qualidade” no trabalho.

Se no caso dos escritórios de advocacia essa reprodução, por adequação ao modelo do chefe, se faz patente, nos estágios em órgãos públicos não é diferente – ao contrário, a prática é assaz semelhante em muitas procuradorias e tribunais. Quando muito o estagiário aprende parte das operações administrativas na condução de um processo judicial, dando uma visão compartimentalizada e alienante. 

O que levou o grupo à constatação final de que se invertem os polos da relação, tornando a Instituição de Ensino secundária diante do Órgão Concedente do estágio. A correção está do lado oposto: cabe à Instituição de Ensino Superior e órgãos superiores zelarem pela prevalência do “espaço de formação” e seus desdobramentos diante de um “espaço de emprego” e suas questões. Acerca dessa questão uma solução possível, surgida nos debates, foi a criação ou efetivação de uma Central ou Coordenadoria de Estágio com atuação cabal no controle e observação do desenvolvimento dos estágios, levando em conta, especialmente o feedback dos alunos.


Em uma sociedade complexa como a nossa, qualquer problemática envolve diversas causas. O desvio pedagógico e funcional nos estágios e a identificação dos problemas a partir de uma observação do meio em que eles se inserem, é de extrema importância. É necessário perceber os problemas do estágio inseridos dentro da problemática do ensino jurídico e do trabalho jurídico: aproximá-los, não distanciá-los, não tratá-los apenas como uma mera questão de relação burocrático-formal entre instituição concedente e concedido.

domingo, 20 de outubro de 2013

Cultura (in)útil e Miguel Reale


Por João Amadeus¹

Penso que para um aluno da UFPE, fazer PIBIC é uma das melhores experiências possíveis como aprendizado. Se a iniciação científica for bem orientada, bem dificultosa, bem trabalhosa, bem instigante; será também, e na mesma medida, gratificante. Isso, infelizmente, é exceção. Guardo imenso orgulho de gratidão por fugir à regra geral.

Tal iniciativa toma peculiaridades próprias quando no âmbito do Curso de Direito, realidade tão solapada pelos cantos de sereias dos estágios bem remunerados. 

Quando o PIBIC encontra o Direito, bem, penso o mesmo que meu Mestre, João Maurício Adeodato, ao dizer que a pesquisa é uma das atividades mais estafantes que um jurista pode desenvolver. No mesmo sentido, o PIBIC – nos termos supramencionados – é uma das coisas mais trabalhosas que um aluno do Curso de Direito pode fazer durante a graduação. Quando se tem respeito e devoção pela causa, a recompensa é proporcional ao esforço. Não a financeira, pois um aluno bolsista do PIBIC recebe de metade a um terço do que ganham os estagiários, em média, ainda que seu trabalho seja de duas a três vezes maior. 

Não quero usar esse espaço para elencar os meandros científicos acerca de minha pesquisa em volta da vida e da obra de Miguel Reale. Procuro, de certo, mostrar que nem só de teses vive um PIBIC. Há prazer direito e indireto na pesquisa dentro do Direito. Gostaria de compartilhar um pouco da cultura (in)útil em volta deste personagem.

Sem mais, lá vai um Reale que poucos conhecem, quando por volta dos 10 anos de idade:
“(...) lembrando que, ainda garoto, me veio a ideia estranha de pisar só na ‘metade do muro’ porque a outra não nos pertencia... O resultado que despenquei sobre uma tulha de lenha, quebrando o braço... Como se vê, minha intuição sobre o direito de propriedade quase me deixou com o braço torto.“ (Memórias, vol. 1, p. 23).

Já aluno de Direito no Largo do São Francisco/USP:

“Braz Arruda era filho do filósofo do direito João Arruda (...) dava muita trela aos estudantes, que acabaram por abusar de sua camaradagem. Certa vez, um aluno de mau gosto levou à sala de aula um frango, que dava intermitente sinal de sua incômoda presença (...) Por fim, devido a uma pressão mais dura, a ave acabou esvoaçando pela sala, enquanto o professor bradava indignado:
– ‘Não dou aula para galináceos. Os senhores jamais me verão na cátedra!’
E saiu revoltado. Cumpriu a promessa, pois, já na aula seguinte, era substituído pelo livre-docente Pinto Ferreira (...) que era uma espécie de coringa, chamado a prelecionar qualquer matéria, nos impedimentos ou falta de catedráticos.
– ‘Deu nisso, comentou um colega com sua habitual ironia, desafiamos o Arrudinha com um frango e ele nos confia a um Pinto... ‘“ (Memórias, vol. 1, p.  48-49).

Quando foi reprovado pela única vez em uma cadeira:

“Pior (...) era ouvir as aulas de Economia Política. Exposição (...) de irrecusáveis méritos didáticos, mas sobre uma ciência morta. (...) Henry Dunning Macleod, economista escocês, a quem a Encyclopaedia Britannica dedica apenas quinze linhas, era apresentado como ‘o revolucnionário’ da ciência econômica.
Atrevido como todo estudante de esquerda, e vaidoso das minhas leituras de Marx, um dia indaguei (...) se não havia um lapso de redação:
– ‘Há um ponto do programa que se refere ao advento de Macleod e a revolução na ciência econômica. Porventura não se tratará de Karl Marx?
A classe ouviu a pergunta estatelada, enquanto era meu nome anotado (...) O certo é que, apesar de, sinceramente, ter escrito quatro páginas razoáveis, no exame de fim ano, ganhei minha única segunda época (...)” (Memórias, vol. 1, p. 43-44).
Nem só de estudo vive um estudante:

“Não se pense, porém, que minha vida como estudante se resumisse a estudos, como ‘cu de ferro’ – ele realmente escreveu assim –. Participava, ao contrário, de festinhas (...) chopadas (...) comilanças. Pertencia ao não menos famoso ‘Grupo do Esqueleto’, que se notabilizara por ter furtado os dois esqueletos do laboratório de Medicina Legal, fazendo-os reaparecer com versinhos de crítica (...)” (Memórias, vol. 1, p. 52).
Tentou mudar a realidade dos tempos de ditadura de dentro para fora do sistema:

“Creio que, em razão das circunstâncias, não me era dado fazer mais, ocorrendo-me o antigo ensinamento de Confúcio: ‘mais vale acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão’.” (Memórias, vol.2, p. 149).
Um dos fundadores da secção da IVR no Brasil, a convite de Viehweg:

“(...) o professor Theodor Viehweg, da Universidade de Mainz e redator responsável pelo Archiv für Rechts und Sozialphilosophie (ARSP) me convidou para organizar no Brasil a secção nacional da “Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social, mas conhecida pela sigra IVR (...) Interntionale Vereinigung für Rechts und Sozialphilsophie (...)” (Memórias, vol. 2, p. 152).
Retomando certos episódios da vida de Miguel Reale que não tem muito a ver com “fazer ciência”, mas rendem uma conversa de bar legal...
Ele exagerava quando se inspirava, o que criava certos problemas com sua esposa, Nuce Reale:

“(...) quando o demônio da inspiração se apoderava de mim, era inútil pensar nas horas marcadas para almoço, jantar ou repouso. Nos primeiros tempos tentou ficar ao meu lado, lendo ou bordando, trocando umas palavras de vez em quando (...) Certa feita, em 1939, quando estava empenhando em escrever (...) ela se dispôs a acompanhar-me em minha aventura de escritor, que começara bem cedo, E as horas passando, passando, e seu carinhoso olhar, ao invés de dar-me juízo, mais me estimulava a escrever, até que ela teve um desmaio, vencida pelo cansaço (...) de então em diante, Nuce deixou-me perdido em meu absorvente estudo.” (Memórias, vol.2, p. 164-165).

Teve sua casa bem frequentada:

“Miguel – está se referindo ao seu filho, Miguel Reale Jr. – teve a sorte, quando aluno do Colégio Santa Cruz, de formar um amigo cujo relacionamento dura até hoje, com a participação constante de Arnaldo Vilares de Oliveira, Joaquim Alcântara Machado, José Alexandre Tavares Guerreiro e Chico Buarque de Holanda não exageraria se dissesse que a música desse exímio compositor também nasceu em minha residência (...)” (Memórias, vol.2, p. 167).
Recusou por duas vezes lugar no Supremo Tribunal Federal:

“(...) o Presidente Costa e Silva, através de Gama e Silva, já me convidara pra exercer as altas funções de juiz da Suprema Corte, convite que me foi renovado pelo Presidente Ernesto Geisel (...)”. (Memórias, vol.2, p. 184).

Era autoritário por natureza, o que ficava patente quando assumiu a supervisão da Comissão Revisora e Elaboradora do atual Código Civil de 2002:

“(...) tanto Agostinho Alvim como Silvio Marcondes tiveram presentes o exemplo peninsular ao elaborarem os títulos relativos ao Direito obrigacional e ao negocial, denominação esta que eu, como Presidente da Comissão Revisora e Elaboradora do Código vigente, preferi converter para ‘empresarial’.” (Nova fase do direito moderno, p. 111).

Mas não cobrou nada para realizar tal empreitada:

“Em termos monetários, ele – o Novo Código Civil – nada custou ao erário. Ao contrário de todos os anteprojetos anteriores, precedidos de contratos de honorários profissionais, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva, Torquato Castro e eu aceitamos gratuitamente a alta incumbência, considerando-a um dever cívico.” (Visão geral do projeto de código civil. Disponível em <http://www.miguelreale.com.br/>. Última visita em 16/07/2013).

Era atento e propenso às causa feministas, mas não gostava de posturas exacerbadas e desperdício de ações:

“(...) lembro que, segundo o Projeto, o chamado ‘pátrio poder’, que no fundo é um ‘pátrio dever’, passará a ser exercido em comum pelo casal (art. 1.689). Não creio que, por uma prevenção terminológico-formal, se imponha a necessidade de abandonar-se o termo ‘pátrio poder’ para substituí-lo pelo tão pouco eufônico ‘poder parental’. E por que não ‘poder familiar’? Mas não nos percamos em questões dessa natureza que, a rigor, nos levariam a vetar o emprego do plural pais para designar a ambos os progenitores... Há feministas tão exacerbadas que talvez sonhem com a substituição da palavra ‘humanidade’ por ‘mulheridade’.”  (Direito natural/direito positivo, p. 26).

Também, como todo ser humano, era vaidoso:

“Verdade e  eficácia são dois valores que se contrabalançam no decorrer da longa vida kelseniana, sempre sujeita a retificações, em função das vicissitudes de sua vivência espiritual. Não é de estranhar-se, por conseguinte, que, em contato com o Common Law durante sua permanência na Califórnia (...) haja ele substituído sua Teoria geral do Estado (Allgemeine Staatslehre) por uma General Theory of Law and State (...) E aqui vai uma confissão vaidosa, lembrando que, em 1940, em manifesto contraste com Kelsen, eu publicara uma de minhas obras fundamentais com o título de Teoria geral do Direito e do Estado... “ (Nova fase do direito moderno, p. 113)

Apesar da 90% do que escrevi aqui sequer ser mencionado na pesquisa, vale o registro só por ser interessante. Como eu disse na primeira parte desse post: há prazer direto e indireto na iniciação científica em Direito, atividade das mais nobres e produtivas que se pode fazer na graduação, não pelo seu caráter institucional, que, bem na verdade, é sofrível; porém sim pelo trato com algumas das coisas mais caras a um bom jurista: filosofia, ciência, pesquisa, cultura...

(In)útil?

___________________________
¹ É aluno da graduação da Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco. Membro do grupo Direito em Foco. Membro do grupo de pesquisa: As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil originalidade e continuidade como questões de um pensamento periférico.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

#Ensino Jurídico - Nota do Grupo


NOTA SOBRE ASSÉDIO NO ESTÁGIO

Após uma roda de diálogo que teve como tema o assédio no estágio, a primeira constatação do grupo foi a de que não é possível falar sobre assédio no estágio sem falar de opressão de gênero e sexo, visto que a ocorrência do assédio nos estágios jurídicos é um "sintoma" da sociedade machista: o ambiente do estágio jurídico é um espaço público e, como tal, reproduz uma série de valores da sociedade. Além, a normatização que regra esses espaços emerge destes mesmos valores, de forma tal que se fixam padrões específicos de “certo e errado”, segregando indivíduos a partir de preconcepções sobre o gênero e o sexo. Um exemplo que demonstra isso é que, assim como em outros espaços, o ambiente do estágio jurídico, por ser um espaço público, é, ainda, dominado por homens.

Dado o desenvolvimento histórico, a distinção surgida pela divisão do trabalho e a luta dos movimentos feministas, é possível falar em um tempo de transição. Antes: a mulher que não podia ocupar os espaços públicos; a proibição moral – “é errado” – e legal, cabendo a ela o espaço privado. Hoje: a situação de luta e conflito, na qual, pela entrada legítima da mulher no ambiente de trabalho, que é um espaço público, surgem situações que desnudam preconceitos e atitudes de um paradigma machista de sociedade.

O Direito em Foco percebe que, sendo o ambiente do estágio jurídico carregado de expressões machistas, a estagiária acaba tendo que enfrentar, além dos problemas estruturais do estágio, a opressão de gênero e sexo. Sobre a mulher recai todo um constrangimento social: a norma, não só a jurídica, diz que é natural que a mulher seja vulgarizada, porque não dizer instrumentalizada, pelos homens. Piadas de clara conotação machista, por exemplo, entram no repertório utilizado para constranger. O anormal é que ela não aceite tais "brincadeiras", de forma que, a qualquer sinal de indisciplina, seja coagida. Exclusivamente sobre a mulher recai a culpa de tal assédio, de forma que este só ocorreu “porque ela pediu ao usar uma roupa provocante demais", devendo servir como "aprendizado" para que no futuro ela se adeque ao padrão de mulher ditado pela norma. Há, ainda, um constrangimento "individual" que pode, também, provocar graves abalos psicológicos e emocionais. Recentemente, o suicídio de uma jovem estagiária em São Paulo, fruto de um assédio cometido por "colegas de trabalho", chamou atenção para estas terríveis consequências. 

A percepção da mulher como única culpada, dificulta, inclusive, a denúncia dos casos de assédio, sendo, então, fundamental a existência de campanhas de conscientização na desconstrução desta visão que faz recair sobre a mulher a culpa pelo assédio. Além disso, a formação de núcleos que funcionem como ouvidoria, facilitando a denúncia, pode ser útil para suprir a atual ausência de mecanismos de auxílio às vítimas.

A própria confusão sobre o que é gênero, o que é sexo, num caldo de naturalizações sociais, afeta também o estagiário. É possível, de forma sintética, atribuir ao gênero toda uma carga simbólica com a qual a pessoa se apresenta em sociedade (relacionando tanto o papel social do gênero, desempenhado pela pessoa, como a identidade de gênero, ou seja, como essa pessoa se vê socialmente). O termo sexo seria usado numa redução à genitália com a qual a pessoa nasceu. Dessa forma sexo e gênero não teriam orientações fixas, mas culturalmente determinadas: o sexo (macho/fêmea) não teria correlação direta, ontológica, com os símbolos que compõem o espectro do gênero (masculino/feminino). Assim como o papel social do gênero, desempenhado pela pessoa, não teria correlação direta e ontológica com sua identidade de gênero, o que ocasionaria o fenômeno da transgeneralidade – que atesta a complexidade da questão, superando os binômios categoriais. 


O Direito em Foco percebe, então, que se a mulher, estagiária, é a vítima imediata de assédios, também o homem, estagiário, passa a ser alvo de ações e normalizações/normatizações que enclausuram e silenciam sua condição de sexo e gênero. A naturalização é ainda mais perversa quando ambos, homens e mulheres, passam a reproduzir, como dominadores ou dominados, uma série de comportamentos de exclusão que atentam contra direitos constitucionais expressos, mas ainda longe de serem efetivamente garantidos.