domingo, 6 de setembro de 2015

Direito, Lógica e uma oportunidade para o futuro

Victor Lacerda

          Nesta última semana, dos dias 31 e de agosto a 4 de setembro, ocorreu o evento NAT@Logic na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O evento, de magnitude internacional, reuniu lógicos, cientistas da computação, filósofos e matemáticos para discutir e ensinar temas atuais da filosofia e da lógica. Além de mim, também estiveram no NAT@Logic Ítalo Oliveira, membro do Direito em Foco, e Torquato Castro Jr. (a quem agradeço por todo o suporte prestado), coordenador do grupo.

          Acho que não estou errado quando digo que fomos ao evento sem a pretensão de ver trabalhos que pudessem estar diretamente ou indiretamente relacionados ao direito. E estávamos enganados ao pensar assim. Na relação de trabalhos a serem apresentados, um chamou nossa atenção: “How Kelsenian Jurisprudence and Intuitionistic Logic help to avoid Contrary-to-Duty paradoxes in Legal Ontologies” dos autores Alexandre Rademaker (FGV/EMAp & Pesquisador da IBM Research) e Edward Hermann Haeusler (PUC-Rio). Nos fizemos duas perguntas: “o que diabos Kelsen está fazendo em uma conferência sobre lógica?” e “seriam os autores ligados ao mundo jurídico de alguma maneira?”.

          Mas esse não foi o único trabalho a me causar estranhamento. Christian Strasser (Ruhr-Universität Bochum), iniciando seu tutorial sobre lógicas não-monotônicas, ressaltou os usos desse tipo de sistema formal para os campos da inteligência artificial, processamento de linguagem natural e para o Direito! Já Ofer Arieli (The Academic College of Tel Aviv), palestrante convidado, ao fazer as considerações iniciais sobre seu trabalho “Sequent-based Argumentation” declarou que o campo da argumentação lógica tinha aplicações estreitas com o Direito.  Ao conversar com os dois durante os coffee breaks, pedi algumas recomendações de literatura para o meu trabalho de monografia e ambos demonstraram conhecer autores como Jaap Hage, Henry Prakken e Giovanni Sartor, que estão na linha de frente da pesquisa em Inteligência Artificial e Direito. 

          No último tutorial do evento, dado pelo professor Frank Sautter (Universidade Federal de Santa Maria), que versava sobre Dynamic Propositional Reasoning, falou-se no problema de validade de normas no esquema piramidal Kelseniano como um problema jurídico que poderia ser abordado através da lógica. Em outro tutorial, dessa vez ministrado pelo professor Ivan Varzinczak (UFRJ), foi apresentada a lógica de descrição, uma linguagem formal para representação de conhecimento, e já é utilizada para a criação de KBS (Knowledge Base Systems) no campo da medicina, mas que percebi ser facilmente transportável para a representação de conhecimento legal. E foi justamente esse o sistema utilizado no trabalho sobre Kelsen. Haeusler apresentou seu artigo e mostrou como fazer uso de uma lógica de descrição intuicionista para representar a legislação brasileira sobre Direito Internacional Privado e resolver um conflito simples sobre a validade de um contrato de compra e venda realizado por um estrangeiro que, em virtude de sua idade, era considerado incapaz pela legislação brasileira, mas que ainda assim deveria ter sua capacidade reconhecida pois assim determinava a legislação de seu país de origem. Em uma conversa rápida com Haeusler, vimos que nem ele nem seu co-autor eram da área de Direito, mas que se interessavam pelo assunto e que inclusive já haviam tentado se aproximar do Legislativo para fazer aplicações da lógica na elaboração de leis.

          Há algo de muito esquisito em toda essa história: há muitos lógicos que vislumbram aplicações de seus sistemas para o mundo jurídico, mas (ao menos na FDR), há poucos juristas interessados no que os lógicos tem a dizer. Internacionalmente, a ponte já foi estabelecida há anos. Por exemplo, as conferências JURIX (28th International Conference on Legal Knowledge and Information Systems) e JURISIN (International Workshop on Juris-informatics) promovem pesquisa interdisciplinar entre lógica, informática, filosofia e direito. Instituições como a Universidade de Bologna, Universidade de Vienna e Universidade de Groningen possuem departamentos e grupos de pesquisa voltados ao campo de Inteligência Artificial e Direito. 

          Disso tudo, posso apenas extrair uma coisa: o estudo sério da lógica e suas aplicações para o Direito poderia constituir uma moderna linha de pesquisa para o Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade. E não precisamos fazer isso sozinhos. Como bem apontado pelo meu colega Ítalo Oliveira, a UFPE já conta com know-how técnico no seu Centro de Informática e uma parceria poderia ser negociada entre o CCJ e o CIn. Obviamente, para que um projeto ambicioso e importante como este saia do papel, é preciso muita vontade institucional. Destaco, por fim, a importância simbólica da cadeira eletiva do novo perfil “Lógica e Direito”. A cadeira, que havia sido aprovada como obrigatória, foi jogada para o campo das eletivas e conta apenas com 30h de carga horária. No entanto, vejo que pode ser usada como espaço para atrair alunos interessados em estudar um assunto intelectualmente estimulante e que passa longe de temas enfadonhos e batidos.

2 comentários:

  1. Muito bom este texto!

    Ajuda a desmistificar a ideia de que direito e lógica não têm nada a ver um com o outro. Esse mito é fruto da ignorância dos que desconhecem a variedade de aplicações e o alcance do campo da lógica hoje em dia.

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  2. Olá Victor, obrigado pelo post. Também acredito nos potenciais de uma melhor cooperação entre as áreas de direito e lógica. Pequena correção, também sou pesquisador da IBM Research além de professor da FGV/EMAp.

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