domingo, 20 de outubro de 2013

Cultura (in)útil e Miguel Reale


Por João Amadeus¹

Penso que para um aluno da UFPE, fazer PIBIC é uma das melhores experiências possíveis como aprendizado. Se a iniciação científica for bem orientada, bem dificultosa, bem trabalhosa, bem instigante; será também, e na mesma medida, gratificante. Isso, infelizmente, é exceção. Guardo imenso orgulho de gratidão por fugir à regra geral.

Tal iniciativa toma peculiaridades próprias quando no âmbito do Curso de Direito, realidade tão solapada pelos cantos de sereias dos estágios bem remunerados. 

Quando o PIBIC encontra o Direito, bem, penso o mesmo que meu Mestre, João Maurício Adeodato, ao dizer que a pesquisa é uma das atividades mais estafantes que um jurista pode desenvolver. No mesmo sentido, o PIBIC – nos termos supramencionados – é uma das coisas mais trabalhosas que um aluno do Curso de Direito pode fazer durante a graduação. Quando se tem respeito e devoção pela causa, a recompensa é proporcional ao esforço. Não a financeira, pois um aluno bolsista do PIBIC recebe de metade a um terço do que ganham os estagiários, em média, ainda que seu trabalho seja de duas a três vezes maior. 

Não quero usar esse espaço para elencar os meandros científicos acerca de minha pesquisa em volta da vida e da obra de Miguel Reale. Procuro, de certo, mostrar que nem só de teses vive um PIBIC. Há prazer direito e indireto na pesquisa dentro do Direito. Gostaria de compartilhar um pouco da cultura (in)útil em volta deste personagem.

Sem mais, lá vai um Reale que poucos conhecem, quando por volta dos 10 anos de idade:
“(...) lembrando que, ainda garoto, me veio a ideia estranha de pisar só na ‘metade do muro’ porque a outra não nos pertencia... O resultado que despenquei sobre uma tulha de lenha, quebrando o braço... Como se vê, minha intuição sobre o direito de propriedade quase me deixou com o braço torto.“ (Memórias, vol. 1, p. 23).

Já aluno de Direito no Largo do São Francisco/USP:

“Braz Arruda era filho do filósofo do direito João Arruda (...) dava muita trela aos estudantes, que acabaram por abusar de sua camaradagem. Certa vez, um aluno de mau gosto levou à sala de aula um frango, que dava intermitente sinal de sua incômoda presença (...) Por fim, devido a uma pressão mais dura, a ave acabou esvoaçando pela sala, enquanto o professor bradava indignado:
– ‘Não dou aula para galináceos. Os senhores jamais me verão na cátedra!’
E saiu revoltado. Cumpriu a promessa, pois, já na aula seguinte, era substituído pelo livre-docente Pinto Ferreira (...) que era uma espécie de coringa, chamado a prelecionar qualquer matéria, nos impedimentos ou falta de catedráticos.
– ‘Deu nisso, comentou um colega com sua habitual ironia, desafiamos o Arrudinha com um frango e ele nos confia a um Pinto... ‘“ (Memórias, vol. 1, p.  48-49).

Quando foi reprovado pela única vez em uma cadeira:

“Pior (...) era ouvir as aulas de Economia Política. Exposição (...) de irrecusáveis méritos didáticos, mas sobre uma ciência morta. (...) Henry Dunning Macleod, economista escocês, a quem a Encyclopaedia Britannica dedica apenas quinze linhas, era apresentado como ‘o revolucnionário’ da ciência econômica.
Atrevido como todo estudante de esquerda, e vaidoso das minhas leituras de Marx, um dia indaguei (...) se não havia um lapso de redação:
– ‘Há um ponto do programa que se refere ao advento de Macleod e a revolução na ciência econômica. Porventura não se tratará de Karl Marx?
A classe ouviu a pergunta estatelada, enquanto era meu nome anotado (...) O certo é que, apesar de, sinceramente, ter escrito quatro páginas razoáveis, no exame de fim ano, ganhei minha única segunda época (...)” (Memórias, vol. 1, p. 43-44).
Nem só de estudo vive um estudante:

“Não se pense, porém, que minha vida como estudante se resumisse a estudos, como ‘cu de ferro’ – ele realmente escreveu assim –. Participava, ao contrário, de festinhas (...) chopadas (...) comilanças. Pertencia ao não menos famoso ‘Grupo do Esqueleto’, que se notabilizara por ter furtado os dois esqueletos do laboratório de Medicina Legal, fazendo-os reaparecer com versinhos de crítica (...)” (Memórias, vol. 1, p. 52).
Tentou mudar a realidade dos tempos de ditadura de dentro para fora do sistema:

“Creio que, em razão das circunstâncias, não me era dado fazer mais, ocorrendo-me o antigo ensinamento de Confúcio: ‘mais vale acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão’.” (Memórias, vol.2, p. 149).
Um dos fundadores da secção da IVR no Brasil, a convite de Viehweg:

“(...) o professor Theodor Viehweg, da Universidade de Mainz e redator responsável pelo Archiv für Rechts und Sozialphilosophie (ARSP) me convidou para organizar no Brasil a secção nacional da “Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social, mas conhecida pela sigra IVR (...) Interntionale Vereinigung für Rechts und Sozialphilsophie (...)” (Memórias, vol. 2, p. 152).
Retomando certos episódios da vida de Miguel Reale que não tem muito a ver com “fazer ciência”, mas rendem uma conversa de bar legal...
Ele exagerava quando se inspirava, o que criava certos problemas com sua esposa, Nuce Reale:

“(...) quando o demônio da inspiração se apoderava de mim, era inútil pensar nas horas marcadas para almoço, jantar ou repouso. Nos primeiros tempos tentou ficar ao meu lado, lendo ou bordando, trocando umas palavras de vez em quando (...) Certa feita, em 1939, quando estava empenhando em escrever (...) ela se dispôs a acompanhar-me em minha aventura de escritor, que começara bem cedo, E as horas passando, passando, e seu carinhoso olhar, ao invés de dar-me juízo, mais me estimulava a escrever, até que ela teve um desmaio, vencida pelo cansaço (...) de então em diante, Nuce deixou-me perdido em meu absorvente estudo.” (Memórias, vol.2, p. 164-165).

Teve sua casa bem frequentada:

“Miguel – está se referindo ao seu filho, Miguel Reale Jr. – teve a sorte, quando aluno do Colégio Santa Cruz, de formar um amigo cujo relacionamento dura até hoje, com a participação constante de Arnaldo Vilares de Oliveira, Joaquim Alcântara Machado, José Alexandre Tavares Guerreiro e Chico Buarque de Holanda não exageraria se dissesse que a música desse exímio compositor também nasceu em minha residência (...)” (Memórias, vol.2, p. 167).
Recusou por duas vezes lugar no Supremo Tribunal Federal:

“(...) o Presidente Costa e Silva, através de Gama e Silva, já me convidara pra exercer as altas funções de juiz da Suprema Corte, convite que me foi renovado pelo Presidente Ernesto Geisel (...)”. (Memórias, vol.2, p. 184).

Era autoritário por natureza, o que ficava patente quando assumiu a supervisão da Comissão Revisora e Elaboradora do atual Código Civil de 2002:

“(...) tanto Agostinho Alvim como Silvio Marcondes tiveram presentes o exemplo peninsular ao elaborarem os títulos relativos ao Direito obrigacional e ao negocial, denominação esta que eu, como Presidente da Comissão Revisora e Elaboradora do Código vigente, preferi converter para ‘empresarial’.” (Nova fase do direito moderno, p. 111).

Mas não cobrou nada para realizar tal empreitada:

“Em termos monetários, ele – o Novo Código Civil – nada custou ao erário. Ao contrário de todos os anteprojetos anteriores, precedidos de contratos de honorários profissionais, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva, Torquato Castro e eu aceitamos gratuitamente a alta incumbência, considerando-a um dever cívico.” (Visão geral do projeto de código civil. Disponível em <http://www.miguelreale.com.br/>. Última visita em 16/07/2013).

Era atento e propenso às causa feministas, mas não gostava de posturas exacerbadas e desperdício de ações:

“(...) lembro que, segundo o Projeto, o chamado ‘pátrio poder’, que no fundo é um ‘pátrio dever’, passará a ser exercido em comum pelo casal (art. 1.689). Não creio que, por uma prevenção terminológico-formal, se imponha a necessidade de abandonar-se o termo ‘pátrio poder’ para substituí-lo pelo tão pouco eufônico ‘poder parental’. E por que não ‘poder familiar’? Mas não nos percamos em questões dessa natureza que, a rigor, nos levariam a vetar o emprego do plural pais para designar a ambos os progenitores... Há feministas tão exacerbadas que talvez sonhem com a substituição da palavra ‘humanidade’ por ‘mulheridade’.”  (Direito natural/direito positivo, p. 26).

Também, como todo ser humano, era vaidoso:

“Verdade e  eficácia são dois valores que se contrabalançam no decorrer da longa vida kelseniana, sempre sujeita a retificações, em função das vicissitudes de sua vivência espiritual. Não é de estranhar-se, por conseguinte, que, em contato com o Common Law durante sua permanência na Califórnia (...) haja ele substituído sua Teoria geral do Estado (Allgemeine Staatslehre) por uma General Theory of Law and State (...) E aqui vai uma confissão vaidosa, lembrando que, em 1940, em manifesto contraste com Kelsen, eu publicara uma de minhas obras fundamentais com o título de Teoria geral do Direito e do Estado... “ (Nova fase do direito moderno, p. 113)

Apesar da 90% do que escrevi aqui sequer ser mencionado na pesquisa, vale o registro só por ser interessante. Como eu disse na primeira parte desse post: há prazer direto e indireto na iniciação científica em Direito, atividade das mais nobres e produtivas que se pode fazer na graduação, não pelo seu caráter institucional, que, bem na verdade, é sofrível; porém sim pelo trato com algumas das coisas mais caras a um bom jurista: filosofia, ciência, pesquisa, cultura...

(In)útil?

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¹ É aluno da graduação da Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco. Membro do grupo Direito em Foco. Membro do grupo de pesquisa: As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil originalidade e continuidade como questões de um pensamento periférico.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Um dos melhores textos sobre pesquisa na graduação de direito que já li. Em certo sentido sem falar de pesquisa! Ao menos quanto ao seu valor científico ou profissional. Inclusive, especial motivo que me levou a começar a pesquisar, também, foi conversar sobre essas coisas que "ficam-de-fora-da-pesquisa" com colegas mais velhos, que já passaram por suas pesquisas.

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