sábado, 5 de abril de 2014

De Kafka a Reale: entre O Processo e o prévio conhecimento da Lei


Por João Amadeus¹
                                
                                  “(...) K. deixou-se levar, sem querer, a um diálogo de olhares com Franz,                    mas em seguida voltou a bater em seus documentos e disse:
– Aqui estão maus papéis de identificação.
– E que nos importam eles? ­– agora era o vigia alto que gritava. ­– O senhor faz um escarcéu como se fosse uma criança. Mas o que é que está querendo? Por acaso o senhor quer levar seu grande e maldito processo a um final rápido discutindo com nós dois, os vigias, sobre identificação e mandado de prisão? Nós somos funcionários de baixo escalão, mal somos capazes de reconhecer um documento de identificação e não temos nada a ver com sua causa a não ser pelo fato de vigiarmos o senhor (...). Nossa repartição, pelo tanto que a conheço, e eu conheço apenas em escalões mais baixos, não se dignaria a achar culpa na população, mas é, conforme diz a lei, atraída pela culpa na população, atraída pela culpa, e é obrigada a mandar vigias como nós. Isso é a lei. Onde é que poderia haver aí um engano?
– Não conheço essa lei ­– disse K.
– Tanto pior para o senhor – disse o vigia.
– Mas ela provavelmente existe apenas em suas cabeças – disse K.; ele parecia querer de alguma maneira penetrar nos pensamentos dos vigias, virá-los a seu favor ou se instalar dentro deles.
Mas o vigia apenas disse, em tom de rejeição:
– O senhor haverá de senti-la.
Franz interrompeu e disse:
– Vê só, Wilhelm, ele reconhece não conhecer a lei e ao mesmo tempo afirma não ser culpado.
(...)
K. nada mais respondeu; “será?”, ele pensou, “que tenho de deixar me confundir ainda mais pela tagarelice desses órgãos mais baixos, conforme eles mesmo reconhecem?Eles falam, em todo caso, de coisas sem nem sequer compreenderem. Sua segurança é possível apenas por meio de sua burrice (...)” [KAFKA, Franz. O Processo; organização, tradução prefácio e notas de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM Pocket. 2012,  pp. 20-21]


Este trecho literário provoca inquietação juridica acerca do problema do prévio conhecimento da lei. Cláudio Brandão, exaltado com a consciência de antijuridicidade formal, exclama: “A presunção de conhecimento da lei é uma das maiores mentiras do ordenamento jurídico! (...) como se pode conceber censurar o autor de um fato típico e antijurídico com base em uma ilusão?” [Curso de direito penal: parte geral. Rio de janeiro: Ed. Forense. 2008, p. 213].

Da literatura universal à jurídica: toda a problemática gira em torno das distinções entre “conhecer”, “verdade”... e, é claro, seus opostos. Mas, direito é “verdade”? Pior, o direito é “verdadeiro”? Afirmar isto traz uma série de implicações, das quais por óbvio não tratarei.

Miguel Reale [Nova fase do direito moderno. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 131-150] faz uma ligação das possíveis respostas às perguntas feitas acima com o problema do prévio conhecimento da lei. De maneira resumida, em preliminar, uma noção valiosa, a de “conjetura”: quando há necessidade de compreensão algo que não se pode determinar analiticamente através de dados verificáveis e conceitos sintetizadores, pode-se dar uma solução plausível, a qual, apesar de não embasada na cientificidade, não a contraria. Assim, o que não é ordenável via conceitos, nem demonstrável analiticamente, é tratado em termos de verossimilhança e plausibilidade no planos da ideias, resultando num juízo de que possui status epistemológico próprio, o “juízo conjetural”.

Na esteira da maratona até hoje percorrida acerca do grau de certeza das demonstrações jurídicas, Reale tomou um atalho: ao tratar o direito na dimensão do conjetural, esquiva-se do pedestal da “verdade”. Não se trata apenas de extrair juízos probabilísticos de dados estatisticamente organizados, mas também de dar o braço a torcer frente à experiência jurídica, amparada sempre com um quê de história. Entre probabilidade, plausibilidade e razoabilidade nasce o conjetural, juízo transcendental ligado, mas não submetido, à experiência.

À Reale, o postulado do prévio conhecimento da Lei se apresenta como advindo da razão prática, pois, apesar de indemonstrável, absurdo seria seu contrário. O axioma – adoto “postulado” e “axioma” como equivalentes – do prévio conhecimento da lei é condição de possibilidade da eficácia do direito positivo. A lei deixaria de ser lei.

No âmbito do direito penal, segundo o mesmo Brandão [op. cit. pp. 216-217] ­– que segue, com algumas divergências, a teoria de Edmund Mezger –, a consciência da antijuridicidade como valoração paralela na esfera do profano basta. Em outras palavras: é suficiente a possibilidade de valoração da conduta, levando em conta o ambiente, a cultura, o próprio ato em si etc. para averiguar sua reprovação.

Disto pinço duas asserções dignas, a meu ver, de nota: de um lado, basta a possibilidade de valoração da conduta; de outro, este julgamento será feito segundo critérios advindos da experiência. Ora, Reale volta à tona: seria o juízo de reprovação ou aprovação da teoria de Mezger um juízo conjetural? Probabilístico é. Dependente da experiência em volta do jurídico, também.

Visto é que a consciência de antijuridicidade como valoração paralela mostra-se como alternativa útil ao direito, que assim deixa de cair na “mentira” do ordenamento. N’outras páginas, Reale neutraliza a questão da verdade no direito através de um câmbio no foco da questão, que passa a ser o juízo de plausibilidade.

Voltando à Kafka: vê só, pessoa que lê, Josef K. reconhece não conhecer a lei e ao mesmo tempo afirma não ser culpado. Ele também disse que a lei existe provavelmente só na cabeça dos vigias. Digna de observação a conexão entre existência e probabilidade.

Restou de tudo visto que a inquietação começa com “verdade”, “mentira” e termina com “verossimilhança”, “razoável”, “plausível” e todos esses conceitos de empirismo duvidoso. Mas é exatamente este o ponto: dúvida por dúvida, fiquemos com a conjetura.

Ponto para Reale?

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¹ É aluno da graduação da Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco. Membro do grupo Direito em Foco. Membro do grupo de pesquisa: As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil originalidade e continuidade como questões de um pensamento periférico.

Um comentário:

  1. necessidade de compreensão de algo*
    num juízo que*
    À Reale o postulado*

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