quarta-feira, 30 de abril de 2014

Um retalho da biografia do lugar: o espírito do passado e o espírito do presente da Faculdade de Direito do Recife



Por André Lucas Fernandes¹

"As novas gerações passaram a ter uma maneira de viver inteiramente diferente da que tinham as gerações que as haviam precedido. O estudante dos nossos dias é empregado do comércio; é repórter; é funcionário público. Não traja a sobrecasaca; veste um fato de linho. Ele possui o que se chama hoje, e o é realmente, uma qualidade toda moderna - o senso prático. Perdeu a alegria, a graça, a espontaneidade, a originalidade.

A mocidade contemporânea se diverte com gravidade "et elle fait des folies rasionables", dizia não ha muito tempo um escritor; e ele aludia assim à igual transformação observada na França, e em outros países da Europa, com relação a vida do estudante. Foram-se na verdade aqueles bons tempos de dissipações joviais; ela é agora refletida, sóbria, sisuda. Uma concepção mais realista, mais prática, da vida lhe veio refrear a indisciplina, a boemia, a exuberância e isso mostra já a diferença que ha entre as gerações novas e as suas antecessoras.

Hoje, os nossos estudantes já se não apaixonam pelos movimentos literários ou filosóficos - por essas justas intelectuais que eram outrora seu maior entretenimento. O jogo puro das ideias não lhes suscita mais nenhuma emoção ou entusiasmo. As tendências são outras e outros também os horizontes: um cargo a ocupar, uma função a exercer. [...]

Mudaram também com o tempo e as leis, os mestres, as aulas, as cadeiras... Tudo mudou. Ora o espírito não podia ficar o mesmo."

.Odilon Nestor, 1930.

O momento narrado no texto não é, ainda, a morte do “espirito que foi modificado”, construído do período Olinda até o ápice do movimento filosófico-literário-interdisciplinar chamado “Escola do Recife”. O que Odilon Nestor, um dos maiores da Faculdade de Direito do Recife, aborda é o "meio" de um processo que começou nos anos 1900 com as reformas no ensino nacional, na época sequer organizado em torno de universidades. Meio, pois ainda em 1930 resiste a geração de Nilo Pereira, outra figura marcante da Faculdade, com as festas culturais organizadas pelo antigo, e na época recém-fundado, Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito (DAFD).

Era o tempo em que tais festas incomodavam a direção da Academia e o barulho do Diretório, tão diferente de hoje, fora capaz de fazer cair o Diretor Virgínio Marques. Época em que Nilo Pereira, presidente do DAFD, diplomaticamente, protegia o órgão estudantil, enquanto Methódio Maranhão, também membro do diretório, tocava fogo na Faculdade com seus “Manifestos”, reclamando a falta de diálogo por parte da direção Virgínio Marques na Casa de Tobias.

Talvez já aí, na “Geração da Angústia”, geração do pós e pré-guerras mundiais, das décadas de 30 e 40, a materialidade do apelido e o reinado fulgurante do patrono Tobias Barreto tenham começado sua decadência até tornar em mera expressão vazia e sem nenhum fundo de conhecimento histórico.

É o próprio Nilo Pereira que comenta, já nos anos 1970, biografando a Faculdade de Direito:

"Hoje, decorridos tantos anos, podemos observar que o conflito entre Tecnologia e Humanismo se tornou evidente e até pungente. Desse assunto se ocupou com grande erudição, no Conselho Federal de Cultura, o prof. Djacir Menezes, mostrando, que o perigo cresceu com a sufocação do humano na ciência e na técnica, em proveito de um saber que, desgraçadamente se vai tornando desumano e até anti-humano [...]"

Os dados históricos são cabais no que afirmam. 1930 até 1970. E qual o espírito da Faculdade de Direito, mais uma vez modificado, na primeira década do século XXI? Em que se sustenta a nossa educação jurídica, o comportamento dos estudantes e professores?

Não é mais nas festas de cultura, nas disputas literárias e científicas, nos jornais e suas facções diversas, distribuídos entre todos os campos ideológicos. Talvez esse último fenômeno tenha se transmudado, meio a torto, meio a direito, nas disputas pelo atual Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho, e no fenômeno do Movimento Estudantil contemporâneo. Também não é na valorização da história, nem na robusta educação que aliava conhecimentos filosóficos (científicos e metafísicos) ao conhecimento técnico, numa abordagem etimológica do Direito, com uma bagagem forte da origem dos institutos em Roma.

Vivemos o tempo do anti-humanismo torturado! O tempo em que docentes e discentes fazem coro da decoreba do código e tomam como objetivo final da graduação a aprovação no exame da Ordem dos Advogados e/ou num concurso público. É o tempo da carreira pela carreira, do direito consumido nas sinopses para passar nas provas, no descaso com as estruturas do saber jurídico, da argumentação que “joga para os princípios”, da imagem que vale mais que o conteúdo. É o tempo dos revolucionários e reacionários que não conhecem a história da instituição, que criticam ou protegem mentiras: os primeiros criticam uma ilusão, empoderando o discurso conservador que pretendem vencer; os segundos tentam proteger uma conservação que nunca existiu como hegemônica. Ambos colam pechas e imagens que não condizem com a digna vida vivida dos que vieram antes de nós.

Hoje, 30 de abril de 2014, um professor questionou e lamentou em sala: onde estão os novos Teixeira de Freitas, Clóvis Bevilaqua, Pontes de Miranda? Ele poderia dizer mais: onde estão os novos Tobias Barreto, Silvio Romero, Phaelante da Câmara, Martins Júnior, Franklin Távora entre tantos outros? Mas é o mesmo professor que vai falar que a Faculdade de Direito do Recife não tem história no pensar filosófico, sociológico, antropológico! O mesmo professor que vai alegar que esses saberes são inúteis. É o anti-humanismo torturado, pior do que os piores pesadelos do memorialista do Ceará-Mirim.

Ora, o espírito não poderia ficar o mesmo, nem poderia gerar além do tão pouco, comesinho, sem vida e paixão que gera. E qual o futuro do espírito da Faculdade de Direito do Recife? Qual o limite para o quadro que se opera? Não é o espírito de Tobias Barreto. Taxativo: Tobias Barreto está morto.

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¹É aluno da graduação da Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco. Estuda a vida e obra de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Fundador do grupo de estudo em Teoria Geral e Filosofia do Direito, Direito em Foco. 

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